segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

A Escravidão nas Charqueadas

 


Há uma unanimidade sobre a larga e fundamental utilização do trabalho escravo nas charqueadas. Isto pode ser observado nos relatos de cronistas e viajantes do século passado, nos relatórios e correspondências oficiais e nos inventários post-mortem. Conforme indicam os inventários, as maiores concentrações  de escravos estavam justamente nesses estabelecimentos. Estudiosos do assunto, como Mário Maestri e Fernando Henrique Cardoso, chegam a afirmar que a escravidão era fundamental principalmente nessas indústrias da carne.

A técnica de charquear a carne bovina é conhecida na região do Prata desde o século XVII, pelo menos segundo uma indicação do padre jesuíta Antônio Montoya sobre uma exportação desse produto feita por Buenos Aires, em 1603. No Rio Grande do Sul, as primeiras indústrias de certo porte surgiram no final do século XVIII, em Pelotas. O ano de 1780 é dado como o de início do desenvolvimento dessa atividade, que se tornaria a mais importante atividade econômica do Sul até fins do século XIX.

Estudos bastante complexos e atualizados sobre as charqueadas foram realizados pelos historiadores Mário Maestri e Berenice Corsetti, além do clássico trabalho de Fernando Henrique Cardoso. Por se tratar de uma indústria de caráter mais urbano do que rural, vamos nos limitar a algumas análises que nos parecem importantes para o conjunto deste estudo. Destacamos a alta concentração de escravos nestes estabelecimentos e o grau de especialização do trabalho existente. Tomemos, como exemplo, o inventário da charqueada do Coronel Thomaz José de Campos, de 1851, no qual consta 66 escravos divididos segundo as seguintes profissões: 3 campeiros; 15 carneadores; 3 salgadores; 17 serventes; 13 marinheiros; 2 cozinheiros; 2 carpinteiros e 10 pedreiros. Essa especialização dos trabalhadores é também observada em outros inventários e até no Relatório de Louis Couty.

No estudo de Berenice Corsetti, os escravos chegam a atingir até 34% do valor do inventário de uma charqueada, em 1862. A média de escravos por charqueada é de 64, alcançando 158 no caso da empresa do Barão do Butuhy. Um levantamento organizado pela autora, a partir de inventários do período 1827-1881, revela que os charqueadores possuíam escravos com vinte e seis profissões diferentes. Com essa constatação, a autora questiona a tese da impossibilidade da divisão técnica do escravismo defendida por Fernando Henrique Cardoso.

Após o final do tráfico de escravos, as charqueadas passaram a empregar cada vez menos mão-de-obra escrava. Berenice Corsetti afirma que, na década de 1860, os escravos já não tinham a mesma importância anterior para a indústria do charque. Mário Maestri chama atenção para a diminuição dos escravos de uma charqueada de Jaguarão, que em 1868 contava com apenas 21 cativos contra os 60 e 80 encontrados nos anos anteriores em estabelecimentos semelhantes. Estas afirmações coincidem com o movimento geral observado na província no sentido de utilização de mão-de-obra livre.

Louis Couty analisa esta tendência de substituição do trabalho escravo nas charqueadas de Pelotas. Segundo o autor, os charqueadores compreendiam as dificuldades da mão-de-obra escrava diante dos concorrentes do Rio da Prata e tratavam de contratar trabalhadores livres, num processo de substituição gradativa. Desse modo, os homens livres eram contratados para as tarefas mais importantes, pois, conforme explicação de Couty, a mistura de operários livre e escrava gerava múltipla inconveniente. Uma alternativa à falsa de operários livres era o pagamento aos próprios escravos por tarefa, como forma de incentivar a produtividade, num ensaio para a transformação dos próprios escravos em trabalhadores livres.

A necessidade de transformação nas relações de trabalho era reconhecida pelos empresários, mas as condições objetivas não permitiam uma mudança repentina, principalmente em função da falta de mão-de-obra habilitada e sujeita a aceitar as condições de trabalho Louis Couty escreve, nesse sentido, que "as condições de uma semelhante transformação são complexas; e, como me disse o Sr. Costa, é preciso ter em conta um grande número de fatores".

Fonte: ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí/RS: Ed. Unijuí, 2002, pág. 125-129.

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