segunda-feira, 18 de junho de 2018

A Revolta dos Muckers


"O Ferrabrás é um dos montes mais imponentes no vale do rio dos Sinos, entre São Leopoldo e Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. O longo chapadão termina abruptamente numa agressiva escarpa coberta de mata virgem. Mais abaixo, fica a cidade de Sapiranga, com suas sessenta pequenas indústrias, e rosas vermelhas plantadas ao longo de todas as calçadas. Ainda hoje, um século depois dos sangrentos episódios que transformaram o vale num campo de batalhas medievais, uma palavra atemoriza os pacatos habitantes da região: mucker!

A revolta dos muckers é um dos episódios mais violentos e desconhecidos da história do Brasil. Fundada por uma colona alemã, histérica e desequilibrada, Jacobina Maurer, e por seu marido, João Jorge Maurer, carpinteiro que se transformou em médico-curandeiro, a seita foi exterminada pelo Exército e milícias civis.

Um dos primeiros documentos sobre o assunto, o livro publicado na Alemanha, em 1900, pelo padre jesuíta Ambrósio Schupp, apresenta os fanáticos como um grupo de bandidos sanguinários e seus destruidores como heróis que vieram redimir uma região conturbada. Na obra, baseada em testemunhas, jornais da época e relatórios oficiais, Jacobina aparece como uma mulher extremamente sensual e seus seguidores são classificados como uma matilha de sabujos. Entretanto, outro livro, publicado em 1957 por Leopoldo Petri, conceituado historiados da colonização alemã no Brasil, analisa os fatos de forma diferente. A responsabilidade pela tragédia do Ferrabrás é dividida entre os fanáticos e seus inimigos.

O que realmente se passou no vale dos Sinos nos alucinados anos de 1873 e 1874, por obra de fé e da loucura de Jacobina Maurer e seus apóstolos? Em busca de uma versão objetiva, REALIDADE ouviu historiadores, visitou museus, consultou obras antigas, relatórios oficiais, e percorreu o local dos acontecimentos ouvindo velhos colonos.

A seguir, REALIDADE apresenta um relato dos acontecimentos que levaram os muckers à sua trágica morte e que incendiaram o morro do Ferrabrás.

Desde menina, Jacobina Mentz apresentava sinais de desequilíbrio psíquico. Introvertida e solitária, ela era vítima de insônias e crises de catalepsia (morte aparente). Seu pai, Libório Mentz, homem rígido e muito religioso que chegara ao Brasil em 1824, após longo desentendimento com as igrejas protestantes da Alemanha, educou-a numa piedade extremada, entre horas de jejum e oração.

Em 1865, porém, com 23 anos, recém-casada com o carpinteiro João Jorge Maurer, 22 anos, três elementos viriam influir na vida do casal: um curandeiro, um pregador e um livro.

Buchorn, um médico popular, ensinou a João Jorge o segredo das plantas medicinais. Beneficiado pela lenda de que havia sido diplomado por uma voz celestial, o ex-carpinteiro começou a receitar.

Ao mesmo tempo, Hardes Fleck, um pregador aventureiro, iniciava Jacobina nos mitérios da Bíblica. Atenta às explicações do inesperado mestre, ela aprendeu desconexamente trechos esparsos do Apocalipse e dos mais violentos sermões evangélicos.

Entre os colonos alemães do vale corria um livro que afirmava ser o sonambulismo algo divino e venerável. Jacobina era sonâmbula e sua fé histérica somada ao curandeirismo de João Jorge encontraram campo fácil para aprofundar suas raízes. Angustiados pela vegetação desconhecida, por cobras e aranhas venenosas de um país estranho; analfabetos, os imigrantes passaram a buscar com os Maurer aquilo que podia amenizar suas vidas incertas: remédio e religião.

As curas e as pregações do casal, de repente, tornaram Sapiranga um lugar importante.Caravanas de cegos, aleijados, doentes, curiosos e desesperados vinham de longe, até de Porto Alegre e Pelotas, e eram recebidos carinhosamente na casa dos Maurer.

Não tardou muito para os seguidores de Jacobina serem apelidados de muckers. Isto é, beatos, santarrões, fanáticos.

'Eu vim trazer a guerra, separar o pai do filho' - Coagidas ou de vontade própria, 32 famílias passaram a reverenciar Jacobina, enquanto aumentavam as hostilidades contra a sua seita. Uma ovelha que aparecesse ferida ou morta era logo levada à conta dos fanáticos. E nem só ovelhas se ferem ou morrem num vale. José Kraemer, um comerciante da região, foi encontrado morto, no meio do mato. Provavelmente caíra do cavalo. Mas, para muitos, não houve dúvidas: era obra dos muckers. Dias depois, enforcava-se Pedro Hirst, um homem que vivia falando em doenças e suicídio. O povo logo espalhou que sua morte era devida aos conselhos de João Jorge, com quem conversara um dia antes.

Nesse clima tenso, um maio quente se aproximava, o de 1873. No dia 7, Jacobina fez seu mais ousado sermão. Para que mandar as crianças à escola se o fim do mundo estava anunciado? Para que ir à igreja, se lá não se explicava direito o conteúdo da Bíblia? Cristo viera trazer a guerra, não a paz. Viera separar pai de filho, marido de mulher. Por isso, a esposa que não queria acompanhar o marido às reuniões deveria ser trocada por outra. E vice-versa.

O escândalo provocado por essas palavras originou um abaixo-assinado de 47 pessoas ao delegado de São Leopoldo, solicitando providências contra as mistificações médicas e religiosas que se praticavam no Ferrabrás. Lúcio Schreiner, o delegado, era primo de João Jorge Maurer, com quem estava brigado devido a problemas políticos e a um empréstimo negado pelo esposo de Jacobina.

Duas semanas depois, Maurer e alguns devotos foram presos e encaminhados à delegacia de São Leopoldo.

Jacobina foi encontrada morta. O corpo embarcou numa carroça e viajou 40 quilômetros até São Leopoldo, onde ficou exposto na Casa de Câmara. Foi picado com alfinetes, canivetes, puxaram seus cabelos, moveram seus membros e nada. Veio o médico, doutor Hillebrand, e seu exame constatou que, independente de profunda letargia - Jacobina aprendera a dominar seus ataques catalépticos segundo as necessidades do momento - , a morta gozava de boa saúde. Os muckers presos puseram-se a cantar e logo sua profetisa acordou entre abraços e beijos de seus adeptos.

Transferidos para Porto Alegre, dias depois, todos os fanáticos foram soltos, por falta de provas.

A intriga cercava os caminhos dos muckers - Um atentado contra a vida do subdelegado de Sapiranga foi atribuído aos muckers e 33 deles passaram vários dias na prisão. Animais das criações dos fanáticos eram mortos, as cercas de suas casas incendiadas. Eles eram vaiados e humilhados nas ruas das cidades vizinhas.

Sem reagir, os líderes da seita resolveram apelar para o imperador. Maurer embarcou para o Rio de Janeiro com uma longa lista de queixas. Não houve resultados.

Na sua volta, atônito, soube que sua mulher o trocara por Rodolfo Sehm, alegando que este tinha um espírito mais forte, mais adequado ao momento. E aconselhava outras pessoas a trocar de parceiro, chegando a escolhê-los, em certos casos. 'Eu não controlo mais Jacobina' disse Maurer. 'Para mim ainda vai sobrar uma bala'.

Sua previsão era incompleta. Em breve o Ferrabrás estaria transformado num inferno.

O terror dos muckers começou efetivamente no dia 15 de junho de 1874. O colono Martinho Kassel, ex-seguidor da seita, intimado por Jacobina a voltar às práticas religiosas, foi a São Leopoldo apresentar queixa à polícia. Ao regressar, viu sua casa fumegando e, sob as cinzas, os cadáveres da esposa e de dois filhos. Nicolau, o filho mais velho, saiu do mato rastejando, ensanguentado e quase à morte. Mal pode dizer: 'Os muckers! Os muckers!

Sapiranga emudeceu de pavor.

Colonos arrecadaram seus bens e a família e fugiram. As casas dos que ficaram viraram fortalezas, armadas e vigiadas dia e noite. Em São Leopoldo, cem praças enviados pelo governo provincial para reforçar a guarnição local preparavam-se para investir contra os assassinos.

Mas os muckers estavam no auge de sua insanidade. Na noite de São João - 24 de junho - imensas fogueiras espalhadas pelo Ferrabrás iluminaram todo o vale dos Sinos. Armados e divididos em grupos, vingaram com sangue as ofensas recebidas. Incendiaram a casa de Carlos Brenner e mataram a coronhadas suas três crianças. Mataram a tiros a mulher e a filha de Filipe Sehm. Teodoro Balz foi carbonizado com toda a família dentro da sua casa. A golpes de facão foram mortos o velho Jacó Maurer e seu filho Guilherme. A tiros, a mulher e a mãe do colono Andreas Dick. Quatro casas comerciais de Sapiranga foram incendiada e um comerciante morto a tiros.

Na Picada dos Portugueses, próxima a Ferrabrás, os colonos iniciaram a reação. As casas de sete famílias muckers foram incendiadas, mulheres e crianças feitas prisioneiras e s homens, em fuga, caçados pelos matos. Mas o pior ainda iria acontecer.

Confusão e mortes no primeiro ataque - A notícia que corria em Porto Alegre dava conta de que o Ferrabrás era uma imensa fortaleza, com casamatas, víveres, munições e quinhentos homens armados. Anunciava-se que a seita tinha ramificações em todo o Estado e estava apoiada por uma potência estrangeira. Para lá seguiu o coronel Genuíno Sampaio, herói da recente guerra contra o Paraguai, à frente do 12o. Batalhão de Infantaria, parte do 3o. Batalhão e cem cavalarianos da Guarda Nacional.

Suas tropas chegaram a Sapiranga ao cair da tarde do dia 28 de junho. E o coronel, com 250 homens, decidiu investir imediatamente para pegar os fanáticos dormindo. Dividiu as forças para atacar pelas duas picadas que levavam a um casarão de madeira, onde Jacobina e quarenta fanáticos, mais mulheres e crianças, estavam entrincheirados. Porém, os dispositivos de defesa e a inabilidade dos soldados levaram o assalto ao fracasso.

Uma das picadas estava obstruída por troncos e a inadvertida coluna que seguiu para lá resolveu voltar, indo ao encontro da outra. Esta, ao perceber movimento de tropas atrás de si, sentiu-se encurralada. Foi quando os muckers abriram fogo cerrado. Cinco soldados morreram, 41 foram feridos e o resto debandou.

Novo ataque foi realizado no dia 19 de julho. As tropas estavam reforçadas por 108 praças do 3o. Batalhão de Infantaria, cem cavalarianos da Guarda Nacional, contingentes das cidades de Rio Grande e Pelotas e duzentos voluntários civis. O governo central enviara seis canhoneiras e a Companhia de Bondes de Porto Alegre emprestara cem mulas para transportar os víveres e munições até Campo Bom, a 15 quilômetros do imponente Ferrabrás.

Vinte vezes inferiores numericamente às forças do Exército que avançavam em três frentes, os muckers morreram um a um. Quase só mulheres e crianças ainda estavam vivas dentro do casarão de madeira quando foi dada a ordem de incendiá-lo.

Ao ver sua irmã, Maria Sehm, cair baleada, uma garota de 10 anos gritou enfurecida para os soldados: 'Você são tantos, não têm vergonha?'. E correu para junto da mãe, que também foi baleada com um filho no colo (mais tarde, esse menino foi prefeito de São Leopoldo). A mãe teve as orelhas e dedos cortados - os pilhadores não podiam perder tempo retirando brincos e anéis. Oito outras foram assassinadas e seus cadáveres seviciados. Várias crianças morreram nas chamas. Um civil, a golpes de baioneta, espetou uma velha cega contra a parede. Outro foi visto brandindo uma vara com dois fetos gêmeos pendurados na ponta. Todas as casas dos muckers foram pilhadas e incendiadas.

Na mesma tarde, o coronel Genuíno comunicou ao presidente da Província que a vitória fora completa. Mas não conseguiu saborear o seu feito. Pela madrugada morreu ferido, por seus soldados que, assustados por um movimento nas matas próximas, abriram fogo contra os companheiros.

O comunicado do capitão Santiago Dantas a Porto Alegre no mesmo dia, dizia: 'Escrevo ainda sob a impressão dolorosa da morte do coronel e de um dos espetáculos mais pungentes que tenho presenciado em minha vida, qual o incêndio e a carnificina feita sobre míseras mulheres e crianças'.

No dia seguinte, o corpo do coronel foi transportado para Porto Alegre juntamente com a notícia: Jacobina e seus principais apóstolos não estavam entre os mortos. Em algum recanto do Ferrabrás continuavam imbatíveis.

O último tiro, no peito de Jacobina - A 2 de agosto, ajudado por um ex-mucker que revelou o local onde Jacobina se refugiara, Santiago Dantas travou a batalha final. Encurralados numa clareira onde construíram ranchos de couro, os fanáticos - treze homens e quatro mulheres - não puderam escapar ao lento e minucioso cerco de tropas. Jacobina foi a última a morrer. Ferida no peito, desvairada, caiu sobre o corpo de Rodolfo Sehm, seu amante. O casal foi atravessado por baionetas. Duas covas abertas no próprio local receberam os corpos, inclusive o de uma garota de 3 meses, filha da profetisa. Em seu relatório, o capitão Dantas, que impediu atos de selvageria, referiu-se com respeito aquele punhado de homens e mulheres.

Em janeiro de 1875, João Jorge Maurer, que conseguira escapar a todas as batalhas, foi encontrado morto nas matas do Ferrabrás. 

Enforcara-se numa fina gravata de seda. Os 23 muckers presos foram condenados em março de 1876; a pena mais alta para Pedro Mentz, irmão da fanática, que recebeu prisão perpétua. Sete anos depois, todos foram absolvidos.

Em São Leopoldo, o atual diretor do Museu Regional, professor Telmo Müller, que há anos vasculha a região em busca de objetos e documentos relativos aos muckers, confessa: 'É falar em mucker e o pessoal fica mudo. Ainda hoje essa palavra inspira terror'."

Fonte: REALIDADE (SP), edição 95, ano 1974, pág. 72-75
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