segunda-feira, 11 de junho de 2012

Seara da Memória

Nota: a Chácara do Fernando ou Chácara do Doutor Fernando já apareceu numa postagem anterior minha. Segundo minhas pesquisas, tal chácara estaria localizada na região da atual Rua Edmundo Peres, próximo à Corsan, podendo ser uma daquelas que estão hoje defronte a esta autarquia. Existe a possibilidade também de ser a mesma que hoje pertence à Família Kaiser e que se estende entre as ruas Edmundo Peres e Idílio Victória. Todavia, não posso afirmar com exatidão.

Trecho extraído de: SOARES, Fernando Manuel. Seara da Memória. Porto Alegre: tiragem independente, 1998.



“Eu nasci em 1940, e mesmo que queira, não conseguiria lembrar as visitas que meus pais faziam ao tio Fernando, de quem herdei o nome, e o gosto pelos doces da Vó Maria Laura. Capão do Leão parecia para mim algo misterioso. Meus primos caçoavam de mim que eu iria saborear sopa de pedra tal como o Malasartes. Eu jamais havia ido às pedreiras e quando fui com meu tio Alberto foi uma aventura inesquecível. Aquele ambiente parecia saído de um western. Pedras enormes, de aspecto colossal, máquinas que inspiravam medo em minha mente infantil. O Laércio, coitado, este não podia ir. Era o molecote da família, que choramingava com as mordidelas das formigas do quintal da vó. Eu, senhor de mim mesmo, era o menino de calças longas que acompanhava o tio Alberto em suas viagens e reuniões.

O Laércio era o primo das molecagens no sítio. Uma vez, eu, ele, mais outros meninos da vizinhança nos metemos em uma enrascada tremenda. Por pouco o tio Fernando não soube e escapamos de uma bela coça. Numa tarde, a nossa patota, armados todos de bonitos bodoques a procurar inocentes passarinhos nas árvores, encontramos um túnel nos fundos do sítio e iniciamos a explorá-lo. Ah, bonitas lembranças! Aquela meninada entrou naquele buraco escuro e curto, somente com a cara, a coragem e uma rústica lamparina de vela de algodão. E nos sumimos lá dentro. A tarde caía e não havia o mínimo indício de encontrarmos o fim, também não estávamos muito preocupados com o jantar. Quando encontramos o outro lado, foi uma festa juvenil. Logo em seguida, o Laércio sempre medroso apontava para uma velha choupana de madeira que se afigurava ameaçadora diante de nossos olhos. Tínhamos penetrado em outra propriedade e, esquivos e desconfiados, tentávamos saber que lugar era aquele. O entardecer já era avançado e divisávamos ao longe o lume do sítio, porém sabedores que estávamos em terra estrangeira. Nossa intenção era fugir dali, então principiamos a caminhar numa estreita vereda, quando surgiram três ou quatro ovelhinhas berrando desesperadas. Achamos graça, desconversamos. Novamente, o Laércio (sempre o Laércio!) era o protagonista e assustado apontava para a figura que vinha atrás do gulliveriano rebanho: o velho Macedo. O velho Macedo era o terror da criançada do Capão do Leão. Falava pouco, tinha a fama de mal-humorado e dizem (risos) que devorava os moleques que invadiam sua chácara. Tudo invenção de menino, com a anuência cúmplice dos adultos. Porém, naquele momento não éramos rapazes suficientemente estudados para diferenciar pau de pedra. Homem de Deus! Aquilo foi uma correria danada. No meio do caminho, havia umas tunas e aquela gurizada não queria saber de mais nada, e foi pulando por cima, levando consigo espinhos nas pernas e nos braços. As interjeições eram as mais engraçadas possíveis. Em seguida, teve moleque que perdeu sapatos, sujou-se no meio do banhado, foi perseguido por cachorro...foram quinze minutos tremendamente excitantes. Do velho Macedo, quando nos demos conta, não tínhamos sequer notícia. Todavia, o Laércio colocava-nos em pânico, gritando esbaforido que o velho estava chegando. Quando topamos com a paineira de trás do sítio, enfim podemos descansar. Para ludibriar nossos tutores e escapar da tão ameaçadora reprimenda com vara de marmelo, uns e outros se auxiliavam, tirando espinhos aqui e acolá, banhando os pés na velha cacimba, para camuflar os sinais de nossa culpa. O Laércio estava imensamente transtornado e esqueceu-se de passar a mão no próprio cabelo. Como um adorno burlesco, o pequenino tinha uma bola de barro atrás da orelha esquerda e assim permanecera com ela até o dia seguinte. O Roderico, garoto aloirado de muitas sardas no nariz, este sim foi descoberto e ficamos sabendo que seu pai aplicou-lhe violenta surra.” (p. 9-13)

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