sábado, 30 de junho de 2018

Santos populares argentinos


"A cúpula da Igreja Católica não reconhece esses santos no 'panteão' oficial dos santos canonizados pelo Vaticano, já que para isso seriam necessários dois milagres confirmados, verificados por doutores em teologia. O segundo e o terceiro escalão do clero geralmente encaram os cultos como 'manifestações de intensa fé'. Mas tentam conduzir os fiéis para o culto de santos 'autorizados'.

Os santos 'populares', com raras exceções, tiveram mortes trágicas. Geralmente são falecimentos de elevado sofrimento... uma espécie de 'passaporte' com visto especial que os coloca em contato direto com Deus. E, além disso, as mortes trágicas limpam os mártires de todos os seus pecados.

De quebra, são santos 'locais', isto é, uma espécie de encarregados diretos, com menos serviço do que os santos ou virgens de alçada mundial. Dessa forma, o milagre solicitado deve - teoricamente - ser concedido (se for o caso) de forma mais rápida.

As lendas indicam que esses santos não oficiais possuem maior 'percepção social' do que seus congêneres europeus e compreendem melhor eventuais escorregões de seus fiéis, como roubar por necessidade.

Não seria adequado solicitar ajuda celestial a um santo como São Francisco, São Miguel, Santa Teresa ou as Virgens de Covadonga, Fuencisla ou Lourdes para ter sucesso em um eventual roubo com o qual poderá saciar a fome de sua família. Mas a pessoa em questão pode, sim, pedir ao Gauchito Gil um respaldo santificado nessa empreitada. No entanto, o Gauchito condenaria e puniria um roubo por cobiça. A Difunta Correa, por sua vez, além de ajudar as pessoas, castigaria aquelas que se comportam mal.

O culto a alguns santos 'populares', que no final do século XIX ou na primeira metade do século XX estava restrito a suas áreas originais de influência nas pequenas cidades do interior da Argentina, começou a expandir-se para as grandes cidades do país. Dessa forma, atualmente é comum ver taxistas com estampas do Gauchito Gil ou comerciantes com uma foto do altar de Gilda ao lado da caixa registradora. O Gauchito Gil conta até com grupo na rede social Facebook.

Entre os vários santos 'populares', estão também Vairoleto, em La Pampa e Mendoza; San La Muerte, em Corrientes e no Chaco; María Soledad, em Catamarca.

Ainda são alvos de adoração os cantores argentinos do estilo musical cumbia Gilda e Rodrigo Bueno. Ambos morreram em acidentes de automóvel (respectivamente em 1996 e 2000), quando viajavam nas estradas, de um show para outro.

E quem são eles? Deolinda Correa, mais conhecida como a Difunta Correa (A defunta Correa), era a mulher de um homem que foi obrigado a engajar-se em um dos exércitos que protagonizavam a miríade de guerras civis que assolavam a Argentina nas primeiras décadas do século XIX.

Deolinda tentou seguir a trilha dos soldados que haviam levado seu marido. Mas, carregando seu bebê nos braços, perdeu-se no meio de uma área desértica. Esgotada, sentou-se no chão e morreu de sede.

Dias depois, um grupo de gauchos  passou por ali. Os homens viram o corpo sem vida de Deolinda. E em seus braços - diz a lenda - estava seu bebê, que ainda mamava dos seios cheios de leite da mãe morta. A criança foi resgatada.

Gradualmente, os gauchos, que nos anos seguintes passavam pelo local, começaram a deixar garrafas d'água para saciar a eterna sede da Difunta Correa. No final do século XIX, a peregrinação até o lugar começou a ficar intensa. O fenômeno consolidou-se no século XX.

No início, ela era procurada para realizar milagres relacionados à saúde, além de proteger os viajantes. Mas, em meio à série de crises que afetaram a Argentina nas últimas décadas, a Difunta passou a ser requerida para outras áreas.

Antonio Mamerto Gil Núñez, que entrou para o panteão extraoficial dos santos argentinos com o nome de Gauchito Gil, era um jovem gaucho que - segundo a lenda - comportava-se como uma espécie de Robin Hood local, roubando dos ricos para dar dinheiro às pessoas que passavam fome. No entanto, as autoridades da região, na época, o consideravam um gaucho briguento e ladrão.

Era misto de bandoleiro e benfeitor foi recrutado pelo Exército com o início da Guerra do Paraguai (1865-1870). Gil fugiu e tornou-se desertor. Outras versões indicam que não desertou e que também participou de um guerra civil interna em sua província. No meio desse segundo conflito bélico, teria tido uma visão, enquanto dormia, do deus guarani Ñandeyara, que lhe ordenou 'não derramar sangue dos irmãos'. Nesta segunda versão, Gil teria desertado dessa guerra civil.

Após desertar, dedicou-se a uma vida de 'Robin Hood'. Nas pausas, aproveitava para participar de festas e bailes.

Anos depois, foi encontrado pela polícia. Não tentou resistir, obedecendo à ordem de Ñandeyara.

Depois de uma longa sessão de torturas no meio do campo, os policiais penduraram Gil em um algarrobo (uma árvore de madeira muito dura) de cabeça para baixo.

Um dos policiais ergueu o punhal e preparou-se para cortar o pescoço de Gil. Nesse instante, o gaucho murmurou: 'seu filho está muito doente. Se você rezar para ele, a criança viverá. Caso contrário, morrerá'.

Gil também teria dito que, quando o policial voltasse para o vilarejo de Mercedes, além de saber da doença do filho, também ficaria sabendo que as autoridades haviam indultado o foragido. 'Você vai derramar sangue inocente, por isso, reze para mim para que eu interceda perante Deus Nosso Senhor pela vida de seu filho... o sangue dos inocentes costuma servir para fazer milagres', disse o prisioneiro.

O policial ignorou as informações e o degolou. Poucas horas depois, de volta a seu vilarejo, o policial foi informado de que seu filho estava profundamente doente. Desesperado, o policial rezou a Gil para que salvasse a criança. Segundo a lenda, o executado desertor salvou o menino do além. Agradecido, o policial enterrou Gil com as correspondentes honrarias cristãs e ergueu um santuário para ele.

Assim, o culto ao santo 'popular' começou no dia seguinte à sua morte. E, de quebra, seu primeiro devoto foi o próprio verdugo. Mas, apesar de sua morte em 1874, seu culto só tornou-se nacionalmente intenso nos últimos 30 anos, por causas econômicas.

Diplomaticamente, perante o crescente culto ao Gauchito Gil, em 2006, Ricardo Faifer, bispo da cidade de Goya, perto de Mercedes, o definiu como 'um irmão falecido que, acreditamos, está perto do Criador'.

O santuário, nas vizinhanças da cidade de Mercedes, na província de Corrientes, é objeto de peregrinações permanentes, para irritação da cúpula da Igreja Católica, que considera que seu culto é 'pagão'. A data em que o Gauchito é mais intensamente celebrado é 8 de janeiro, dia que teria marcado seu sacrifício.

A peregrinação ao santuário do Gauchito Gil reúne em média 130 mil pessoas no dia desse santo. Essa marca, na Argentina, só é ultrapassada pela romaria realizada à Basílica de Itatí, onde está a imagem da Virgem de Itatí.

O Gauchito Gil é retratado como um gaucho jovem, de cabelos longos e rebeldes que caem sobre os ombros, bigode e boleadoras (armas feitas de corda, com duas bolas na ponta) nas mãos. Atrás dele, costuma aparecer uma cruz. Se não fosse pela ausência da barba (somente possui o bigode) e a vestimenta gauchesca (e as boleadoras), sua figura poderia ser confundida com a iconografia costumeira de Jesus Cristo.

Entre todos os santos 'populares', o culto do Gauchito Gil é o que mais teve repercussões artísticas, tanto em forma de canções, filmes, como peças de teatro, além de obras repentistas.

Há um santo muito festejado que não é local. Headhunter celestial, San Cayetano (São Caetano) é o santo com maior ibope entre os argentinos, já que sua especialidade é a de conseguir trabalho para os desempregados e manter o emprego daqueles que já o possuem. Especialidade, por sinal, utilíssima nas últimas décadas. Sua data é 7 de agosto, dia de peregrinar às paróquias que esse santo possui em diversas partes do país."

Fonte: PALACIOS, Ariel. Os argentinos. São Paulo: Contexto, 2013, p. 204-208.




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