terça-feira, 10 de julho de 2018

Açorianos no Rio Grande do Sul


"Localizado no extremo meridional do Brasil, o estado do Rio Grande do Sul tem uma história marcada por especificidades e uma singularidade que o diferencia sobremaneira dos demais estados brasileiros.

Conquistado tardiamente dos espanhois (eis sua singularidade), os portugueses empreenderam a ocupação do espaço sul-rio-grandense com empenho, especialmente a partir do século XVIII, através de uma disputa militar com sucessivos confrontos, contracenados por tratados que objetivavam acomodar os interesses dos dois estados europeus na América.

Eis que o Tratado de Madrid de 1750 que determinava a entrega da área das Missões a Portugal, em contrapartida legitimava à Espanha, a Colônia do Sacramento, posto avançado que a Coroa Portuguesa fundara em frente a Buenos Aires, em 1680, para pôr em prática o ousado sonho, de fazer do Rio da Prata o limite natural de sua possessão frente a da Espanha, na América Meridional.

Com esta realidade de avanço para além do que rezava o Tratado de Tordesilhas (1494), Portugal, de imediato, projetou garantir as novas terras conquistadas com povoadores a seu serviço, visto que a área missioneira até então reunia jesuítas a serviço da Espanha, através de aldeamentos indígenas - os Sete Povos das Missões.

Do arquipélago dos Açores, ilhas situadas no Atlântico Norte, a noroeste da África, já vinham chegando açorianos desde a década de 1740 para alimentar a lógica defensiva que Portugal procurava desenvolver na área sulina. Igualmente, ilhéus já estavam localizados na Colônia do Sacramento, Maldonado e imediações, cumprindo o papel de povoadores e defensores dos interesses portugueses na área em disputa.

Assim, para garantir o Tratado de Madrid, foi dada a ordem para virem casais de número à então Capitania de Rio Grande de São Pedro, correspondendo à necessidade de aliviarem as ilhas dos Açores, superpovoadas, cuja carência de alimentos era uma realidade. Do outro lado do mar, no sul do Brasil, havia falta de braços e de 'defensores'. Nessa conjuntura favorável começaram a chegar pelo porto de Rio Grande, em 1752, os açorianos ao Rio Grande do Sul.

Segundo dados estatísticos até agora não bem esclarecidos, porque contraditórios, cerca de 350, para uns, 585 casais açorianos, para outros, entraram, então, no RS, número distante do projeto real de enviar 4 mil casais.

A ordem era transportá-los além do Rio Pardo, retaguarda militar portuguesa para a demarcação dos limites, situando os açorianos na área missioneira com o fim de ali exercerem o papel de cunha, de retaguarda garantidora do domínio português na região. Esta era a real função que então lhes era imposta - a de serem soldados a serviço de Portugal.

Entretanto, as resistências ao tratado aconteceram. A confirmar a Guerra Guaranítica, um verdadeiro manifesto indígena de que esta terra era deles, acima da disputa colonialista que os submetia.

Na espera das demarcações e resistências, os açorianos foram se fixando, plantando e produzindo.

Anulado o Tratado de Madrid, em 1761, com o Tratado de El Pardo, caia por terra o projeto de colonização açoriana no oeste missioneiro.

A seguir, a invasão espanhola de 1763 sobre a vila de Rio Grande forçou o processo de fuga das imediações, quando então os açorianos se espalharam em várias direções, reassentando-se nesta circunstância de conflito. Assim, muitos se fixaram em núcleos portugueses já existentes, como em Santo Antônio da Patrulha e Conceição do Arroio (Osório), somando-se aos ilhéus já lá instalados, migrados pelo Litoral Norte de núcleos açoritas de Santa Catarina. Outros deram origem a novos núcleos povoadores como Encruzilhada, Triunfo e Taquari, esta projetada pelo Governador da Capitania, Custódio de Sá e Faria, em 1764.

Para o Porto de Dorneles (atual Porto Alegre), vértice do ângulo que unia as duas fronteiras, a do mar (Rio Grande) e a de terra (Rio Pardo), foram levados 60 casais. Ali instalados, povoam as chácaras com trigais e outros cereais. Em datas de 272 ha, a pequena propriedade era implantada na Capitania, contrastando com a sesmaria, a grande propriedade, com cerca de 13.000 ha, já lastreada em grande parte do leste sulino. Neste cenário despontava o Porto dos Casais, como importante centro abastecedor de alimentos da região, agora configurada como uma sociedade de classes que se estruturava e que paulatinamente foi sendo consolidada.

Com os açorianos se implantava a agricultura no Rio Grande do Sul, que passou não só a fornecer alimentos para o mercado local, como a render lucros à coroa portuguesa com a crescente exportação da produção tritícola. Eis em Porto Alegre, os moinhos de vento e as azenhas a moerem o grão, fruto da faina açoriana.

Entretanto, muitos foram feitos soldados, na defesa das terras portuguesas do sul. E pelos serviços militares prestados era realizado o pagamento com a doação de uma ou mais sesmarias. Surgia então o açoriano-estancieiro.

Se de um lado tal ascensão acontecia, muitos outros açorianos tiveram, ao contrário, suas pequenas propriedades tomadas e incorporadas, às já grandes propriedades de muitos estancieiros.

É neste clima de tensão que se avizinha, em 1777, o Tratado de Santo Ildefonso. Com ele perdia Portugal a área missioneira e a Colônia do Sacramento. Entretanto, apesar do tratado, Portugal passou a conceder mais terras, através de cartas de sesmarias, avançando seus domínios na direção oeste. A saída, para tanto, viável, era pelo menos incorporar, através da política de concessão de sesmarias, o amplo território missioneiro, cenário projetado para os açorianos quando do Tratado de Madrid. Sem dúvida aquela era uma estratégia eficaz e sem ônus para a Coroa, na medida em que o sesmeiro, ao ganhar a propriedade, tratava logo de transformar sua posse numa verdadeira fortaleza. Assim, ao resguardar seus bens estava também garantindo a posse portuguesa na área em conquista. Com este projeto, Portugal, sem descanso, foi concedendo terras na direção oeste.

Ao iniciar o século XIX, em maio de 1801, um servidor da coroa espanhola no Rio Grande do Sul, Félix de Azara, fundador da primitiva povoação de São Gabriel, percebeu o perigo que a Espanha estava correndo. Escreveu ele ao rei a Memória Rural do Rio da Prata, na qual destaca que estabelecimentos portugueses estavam sendo espalhados em seus domínios. E alertava ele que se não fossem tomadas providências urgentes, estabelecendo ali núcleos espanhóis, em menos de quatro anos a Espanha perderia posse do referido território.

Todavia o alerta de Azara fora tardio. Não quatro anos, mas quatro meses após, as Missões eram conquistadas definitivamente por Portugal. A partir daí o território do Rio Grande do Sul é domínio luso e, como tal, incorporado, consolidou raízes que vinham sendo implantadas ao longo do processo de conquista. Certo é que no número populacional do RS, do final do século XVIII, mais de 50% é originário das ilhas."

Fonte: BARROSO, Vera Lucia Maciel. Os açorianos no Rio Grande do Sul. In: NEUBERGER, Lotário. RS no contexto do Brasil. Porto Alegre: CIPEL, EDIPLAT, 2000, P. 126-130.
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