segunda-feira, 4 de julho de 2022

I Festival Punk Rio-São Paulo

 



Punk no Rio: rebeldes sem causa

Palavrões contra o sistema, som ensurdecedor, trem da Central na volta ao lar

"ÊXTASE totaal". A voz saiu pastosa da boca do jovem de preto, com um alfinete de fralda de bebê enfiado no nariz, os olhos esbugalhados diante da cena. Outros dois jovens, Breno e Malu, dançavam descalços sobre um tapete de cacos de vidro, ao som de palavrões gritados pela platéia. Tímido, semi-oculto pelos Arcos da Lapa carioca, um quarto crescente de lua tudo observava. Era o primeiro Festival Punk Rio-São Paulo, no Circo Voador.

Três mil jovens se comprimiam entre as estruturas de ferro para ouvir guitarras ensurdecedoras, nos rocks de dois minutos detonados por grupos como o Coquetel Molotov, Lixomania, Descarga Suburbana, Eutanásia, Fogo Cruzado, e para gritar palavrões de ordem contra o sistema. 

Puro punk rock brasileiro. Brasileiro? Bem, digamos que seja uma adaptação tropical do movimento iniciado em Londres em meados dos anos 70 que chegou a ter algum eco no Brasil, na época, dando origem a grupos como o Joelho de Porco. Mas se, na Inglaterra, o punk rock surgiu espontâneo a partir de adolescentes pobres e desempregados, no Brasil não pegou, na ocasião. Como uma bomba de efeito retardado, ele explode agora, em tempos mais brabos, principalmente no ABC e nos subúrbios de São Paulo. São Paulo até leva a sério o punk, que já conta com uns cinco mil adeptos. No Rio, ele só agora começa a acontecer, com o primeiro grupo - o Coquetel Molotov - nascido de jovens suburbanos de Campo Grande e do Méier.

O Festival do Circo Voador serviu para mostrar a fragilidade de um movimento que não pretende ser nada frágil e que, para engrossar um pouco sua massa, pediu emprestado adeptos de outras classes sociais, enchendo o espaço cultural mais badalado do Rio de Janeiro e promovendo a convivência democrática, ou melhor, anárquica, das mais diversas tendências de comportamento da juventude. No festival havia lugar para todos: do clã do Djavan aos palavrões do Coquetel Molotov, do new wave Pará-lamas [sic] do Sucesso a esquerdinhas festivas ou carrancudas, Houve até um espetáculo de autoflagelação degustado ao sabor de sanduíches naturais. No Brasil, todos querem estar no palco, ninguém quer ser platéia, já dizia Gilberto Gil.

"Odeio tevê! Odeio você!", berrava Tatu. Isso mesmo, Tatu, vocalista do Coquetel Molotov, à frente de um telão de vídeo que reproduzia seu rosto enquanto o prato da bateria voava do suporte a todo momento, por falta de um parafuso. "Agora é que o movimento vai pegar no Brasil", fala Tatu, "não dá para explicar o que é. Punk é assim, de repente. É esta loucura toda... O sistema que oprime a gente... A falta de perspectiva profissional. Está tudo podre". Tatu é carioca do Méier, estudante de comunicação da UFRJ e, naquela noite, tinha os cabelos grudados com brilhantina, vestia um blusão de couro negro bem maltratado e transportava alguns palavrões na boca de suas calças.

A multidão que lotou o Circo Voador, apesar de grande parte ser apenas curiosa em relação ao movimento punk, pegou rápido o espírito da coisa e dançou, brigou, bebeu, cheirou, se jogou no chão, subiu ao palco, gritou palavrões pelo microfone e puxou a perna de Perfeito Fortuna - ex-Asdrúbal-Trouxe-o-Trombone, mestre sem nenhuma cerimônia do festival. Perfeito também dançou a noite inteira e repetiu várias vezes que "no Circo Voador dançavam juntas todas as diferenças".

Por toda parte havia faixas tentando explicar qual é a do pensamento punk: Fora Capitalismo, Fora a Burguesia, Fora com o Sistema, Roupa Cara é Mania, Etiqueta é Fantasia, Nosso Regime é Anarquia. Um festival punk. E não era? O som de altíssimo volume e qualidade nem sempre tão alta, muita espontaneidade importada de São Paulo e dos subúrbios cariocas, em contraste com muita produção: os chamados punks de butique. Uma noite de Cinderela. Na manhã de domingo, tudo acabado. Tatu explica: "O pessoal tem que trabalhar. Se não trabalha, tem que se virar". Cedinho, na manhã de segunda, sem nenhuma fantasia. Novos encontros? Toda sexta à noite, em alguma estação do metrô. São Bento em São Paulo, Cinelândia no Rio.

Sérgio Costa

Fonte: MANCHETE (Rio de Janeiro/RJ), edição 1617, 16 de Abril de 1983, pág. 124

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