quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A cultura do chimarrão


"Em face da noção de tempo, percebido como cada vez mais exíguo por parte dos habitantes da cidade, o hábito de sorver um chimarrão pelas manhãs em uma roda composta por pessoas da mesma família, acabou sendo substituído por um ritual solitário. Pessoas que moram em Porto Alegre não abrem mão de chimarrear nem que para tanto tenham que prescindir da companhia de outrem. Acordam cedo, preparam o mate e tomam a beberagem antes de saírem apressadas em direção aos escritórios, lojas, fábricas onde, durante o dia, dependendo da formalidade do ambiente poderão compartilhar ou não com colegas a sociabilidade inerente ao 'tomar um chimarrão'.

Conta a lenda que um chefe indígena de uma tribo Guarani, só tinha uma filha e precisava escolher um guerreiro da tribo para suceder-lhe, o jovem mais apto era por quem sua filha havia se apaixonado. Acontece que nesse caso ao se tornar esposa do chefe, ela deveria acompanhá-lo nas guerras e em todas as ocasiões, isso faria com que o velho índio ficasse sozinho sem ter os cuidados da moça. Sabedor dos sentimentos da filha e de que não poderia contar com a presença dela ao seu lado, o velho chefe resolveu apelar para o deus Tupã que lhe desse uma companhia para as horas de solidão. Tupã mostrou ao índio uma árvore cujas folhas deveriam ser retiradas, secadas e trituradas. A bebida deveria ser consumida mediante a utilização de água quente despejada sobre essa erva. Tupã, também, ensinou sobre o corte do porongo, ou seja, a cuia, e a utilização de uma taquara como canude, a bomba. Assim, o cacique teria como espantar a tristeza nos momentos em que sua filha estivesse ao lado do marido.

Então, de certa maneira, ao beber o chimarrão de modo solitário, o gaúcho encontra uma companhia, tal qual faz referência a representação narrada através da lenda.

O chimarrão ou mate amargo é uma bebida, um hábito legado pelas culturas indígenas, em especial, a guarani. Ainda hoje é hábito fortemente arraigado não apenas no sul do Brasil, mas também no Mato Grosso do Sul, parte da Bolívia e Chile e em todo o Paraguai, Uruguai e Argentina. O chimarrão é preparado com erva-mate, resultando em uma bebida, geralmente, servida quente sob a forma de infusão. Apesar de existirem várias espécies de erva-mate na América do Sul, no Rio Grande do Sul, a espécie cultivada é a Ilex Paraguariensis. A erva tem sabor amargo, é composta por pequenas folhas secas, trituradas e peneiradas, de cor verde, havendo uma grande variedade de tipos (moída grossa, moída fina, só folha). Um aparato fundamental para o chimarrão é a cuia, espécie de vasilha com a largura de uma caneca e a altura de um copo. Outra ferramenta indispensável é a bomba, parecida com um canudo, normalmente feita em metal, com aproximadamente 25 cm de comprimento e em cuja extremidade inferior há uma pequena peneira do tamanho de uma moeda e na extremidade superior um bocal.

Sobre a relevância do chimarrão como algo gregário, tem-se a análise de um tradicionalista: 'No Rio Grande do Sul a hospitalidade é uma constante na vida do gaúcho. E o mate, quer no núcleo familiar, ou entre amigos, desempenha a função de agregador, harmonizando através do calor humano esta simbiose afetiva, pelo clima de respeito que floresce por entre os mates conversados'.

Esse mesmo tradicionalista apresenta três maneiras possíveis de o gaúcho 'tomar o mate'. O mate 'solito' é aquele sorvido de maneira isolada; o mate de parceria que seria o bebido por casais ou em duplas de amigos e a roda de mate que consiste na ingesta da bebida de forma comunal, em grupo. Por significar amizade, o mate não deve ser solicitado e sim é preciso aguardar que alguém o ofereça.

Ao servir o mate em uma roda, algumas regras devem ser observadas, como por exemplo, o pegar a cuia com a mão esquerda e o recipiente para encher com a mão direita, a entrega da cuia para um integrante da roda deve ser realizada através da mão direita, caso isso seja impossível, há que se pedir desculpas, a roda de mate entre os participantes será feita sempre pela direita de quem está 'servindo' o mate.

A competência para ajeitar a bomba ou arrumar o topete (barranco) do mate é exclusiva daquele que está 'enchendo' o mate, é dele também a prerrogativa do primeiro mate, isso se deve ao fato de que no passado o mate era utilizado para envenenar inimigos, assim, ao tomar o primeiro o 'enchedor' evidencia que a bebida está própria para o consumo. Roncar a cuia significa sorver todo o líquido e não representa falta de educação, ao contrário, faz parte da cultura do chimarrão, bem como saber o tempo de permanecer com a cuia na mão, se a pessoa demora muito em devolver a cuia para o 'enchedor', é comum a frase: 'Morreu de cuia na mão'. Agradecer significa que o integrante da roda está satisfeito e não quer mais tomar mate e não uma forma de educação ou elogio. Para elogiar é costume dizer que o mate está muito bom. Quando a conversa 'regada' a chimarrão está agradável e alguém quer se retirar, é costume o gaúcho dizer: 'Tome mais um mate, está cedo'.

A maioria das bebidas típicas do Brasil costuma ser passível de aquisição mediante compra em lojas especializadas ou não. No caso do chimarrão, ele não pode ser adquirido pronto, é preciso comprar os apetrechos e a erva e com paciência desenvolver a habilidade de elaborá-lo. As diferentes marcas de erva, disponíveis no Rio Grande do Sul, trazem em seu pacote impressa a forma como deve ser preparado. Assim, é explicitado: coloque 2/3 de erva-mate na cuia, acomode a erva sobre um lado da cuia, derrame água morna, deixe a erva inchar por alguns instantes, introduza a bomba até o fundo da cuia, para um melhor chimarrão nunca deixe ferver a água. Essas instruções impressas nos pacotes de erva contam com ilustrações que permitem uma melhor compreensão daquilo que é descrito. A temperatura da erva requer ouvido apurado, pois é voz corrente que a água na temperatura ideal é aquele que chia.

A cuia tradicional é feita de porongo, mas hoje já é possível, encontrarmos à venda, cuias de madeira, plástico, vidro, louça, porém o gaúcho apegado as suas raízes não abre mão da cuia de porongo. No entanto, a chaleira usada para colocar a água na cuia foi substituída pelas garrafas térmicas, mais fáceis em seu manuseio, além de manter o calor por mais tempo, essa substituição se deve ao fato de não mais ser em ferro as chaleiras e nem os fogões à lenha, utensílios presentes nas casas do interior e que não se incorporaram ao espaço urbano."

Fonte: CAVEDON, Neusa Rolita & alii. "O Mate Amargo e o Doce de Leite": entrecruzando as culturas regionais, locais e organizacionais nos mercados públicos de Porto Alegre e de Uberlândia. In: Revista Gestão e Planejamento, Salvador, v.11, n.02, jul./dez. 2010, p. 160-162
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