quarta-feira, 16 de março de 2022

Indígenas no caminho entre o Rio Grande do Sul e São Paulo em 1841

 



ABORIGINES

Fragmento de viagem

Quem vem das campinas do Rio Grande do Sul, para a província de S.Paulo, tem de atravessar largos sertões, caudalosos rios, e magnificos campos. Fizemos esta viagem em 1841, e desse tempo são estaas notas, que agora sugeitamos ao prélo, e offerecemos ao publico.

Partindo da Cruz Alta, passámos no Passo-Fundo, Matto Castelhano, Campo do Meio, Vaccaria, e chegámos ao Rio Pelotas, que serve de divisa entre o Rio-Grande e Santa Catharina; atravessando o rio chegámos aos Campos Novos, de onde fizemos uma pequena digressão aos Campos de Palmas, e voltando de lá retomamos nosso caminho passando pela então pequena povoação de Curitibanos, tomamos a direcção do Sertão chamado de S. Paulo, onde se acha o pequeno rio Canôas, que é a divisa de Santa Catharina, e S. Paulo, entrando no territorio desta ultima provincia, chegámos ao importante registro, e pequena povoação do Rio-Negro, e depois nos internâmos pela provincia, fazendo ainda diversas digresões pelas mattas e rios da comarca de Coritiba, hoje provincia do Paraná.

Em todo este trajecto encontrámos sempre noticias aterradoras da proximidade, e invasão dos bugres bravios, restos dessas antigas tribus de aborigenes, e que habitão as mattas e sertões desses lugares. E com effeito, aqui encontra-se os restos de uma habitação que os bugres incendiarão, depois de saquearem, e darem a morte a todos os moradores; ali encontrão-se os vestigios de alguns assassinatos, feitos nos viajante que incautos pernoitavão nos lugares de correrias dos bugres; acolá encontravão-se innumeras cruzes, que provavão que n'aquelle logar tinah havido uma matança de passageiros; mais além, ainda se achavão ossadas humanas, e ossadas de cavallos, resultado de um assalto de bugres que não tinhão poupado uns e outros: enfim, por toda a parte os signaes de devastação, marcavão o aparecimento das hordas selvagens. Desejosos de saber qual a tribu a que pertencião estas hordas, e porque motivo levados só pelo espirito do saque, e do roubo, comettião tantas atrocidades, tratámos de estudar o caracter de alguns bugres semi-domesticos, que apparecião em differentes pontos, e com quem tivemos occasião de praticar; indagámos suas nações, usos, e costumes, e o mesmo fizemos com alguns que cahião prisioneiros, quando os habitantes davão algum ataque aos seus alojamentos; e aventurando-nos a visitar os alojamentos de algumas tribus ou hordas já entradas na domesticidade, ahi os acabámos de estudar, tanto quanto nos permittia o tempo de nossa demora, e as relações que podiamos entabolar com esses homens da natureza. Do resultado destas nossas indagações, vamos dar aos nossos leitores uma breve noticia.

As hordas que infestão esses lugares, não são todas originarias de uma só tribu, ou nação; e ainda que seus dialectos se assemelhão, ha comtudo bastante differença entre elles.

Alguns destes aborigenes, restos de uma ou outra tribu, constituem um povo separado, conservado em sua pureza o idioma, usos e costumes de seus antepassados, e vivendo ainda em guerra com outras tribus suas inimigas; porém outros teem-se misturado, e em um só alojamento se encontrão as reliquias de differentes tribus, cujos usos, costumes, linguagem, hoje amalgamados e confundidos, tem tomado um caracter novo e especial, onde em balde se procuraria a primitiva origem.

Algumas horas sómente se compoem de selvagens no estado primitivo; mas outras teem de envolta alguns inidios que já forão domesticados, e viverão com gente civilisada, e que voltárão para as mattas, e estes bandos que possuem esses refractarios da civilisação, são justamente os que mais se empregão no salteamento das estradas, e habitações.

Os indios que apparecem desde a Cruz Alta, até á Vaccaria, são pela maior parte Carijós, ou Guaranys, ainda que juntos com elles existão alguns Tupinaes [sic], e Tupinambás, restos dessas tribus que habitarão a provincia de S. Paulo, e o Sul do Rio de Janeiro. Estes restos hoje estão tão misturados, que é difficil obter um ou outro indicio, pelo qual se julgue destas origens; comtudo com bons interpretes, que são sempre indios já civilisados, ou para melhor dizer domesticados, consegue-se alguma cousa, acompanhando as maravilhosas tradicções dos aborigenes anciãos, das quaes é preciso separara o verdadeiro do falso. Esta horda tem alguns alojamentos insignificantes na serra de Itapeva, na que desce para Santo Antonio da Patrulha, e outros pontos das mattas; mas o seu principal aldeamento, é no interior do Matto-Castelhano, para a banda do Rio Pelotas, e talvez não mui longe dos confins dos Campos de Palmas. Este aldeamento é vasto, tem muitas cabanas, algumas de uma só familias, e outras maiores que servem de habitação a umas poucas de familias: é todo cercado de uma dupla palissada, que ainda é defendida por largos ainda que imperfeitos fossos, que tambem são guardados por muitos fojos em todas as direcções, os quaes deixão apenas livre para a entrada um estreito e sinuoso caminho, só conhecido dos bugres.

Nesta horda existem alguns bugres domesticos, que dirigem os ataques das casas e caravanas; e suppomos que a escolha, e formação do aldeamento neste lugar, é devido a alguns Guaranys já domesticados pelos Jesuitas das Missões, os quaes pela expulsão d'aquelles Padres, se juntárão aos restos da sua tribu ainda selvagem, e tratárão de organisar-se em tribu, de novamente. Temos esta supposição, em razão de que o alojamento é quadrado, e de uma organisação interna semilhante á que os Jesuitas derão aos differentes povos das Missões, havendo mesmo entre os indios, algumas tradições dos Jesuitas. As armas destes bugres, são a fléxa, e a maça de páo; comtudo, os indios domesticados que andavão com elles, algumas vezes tem usado de armas de fogo; a maior parte das pontas das fléxas desta horda, são feitas de ferro, para o que se servem de pontas de faccas, ou de qualquer ferro que apanhão; as faccas tambem lhe servem para varios usos. Quando atacão é sempre de surpreza, e fazendo grande alarido durante o combate, se este tem lugar; matão todas as pessoas e animaes que encontrão, e saqueão o que lhe convém, não deixando o dinheiro em ouro se o encontrão. No geral andão nús, e alguns trazem tangas de pennas, ou de panno. O aldeamento é ali permanente, mas os indios destacão partidos que dirigem suas correrias para differentes pontos. Esta horda causou immenso estragos, e tem-se portado com tal ousadia, que em 1840, quando o General Labatut, fez a sua retirada de cima da serra, na passagem do Matto-Castelhano, forão por elles atacada algumas bagagens e pessoas que ficarão a retaguarda do exercito.

Diz-se que neste aldeamento, ha tambem, organisadas pelos Guaranys que pertencerão aos Jesuitas, algumas toscas officinas de carpinteiro, e ferreiro, e uma forja; o que não asseveramos que seja exacto, mas que comtudo é acreditavel, visto o seu trabalho das fléxas, e alguns machados de ferro, que se lhe tem encontrado, quando no geral os indios usão deste instrumento feito de pedra.

Segundo alguns bugres prisioneiros, estes selvagens tem prisioneiras no seu alojamento, algumas mulheres tomadas ás caravanas que tem roubado e destruido.

Fonte: O COSMOPOLITA: JORNAL LITTERARIO, INSTRUCTIVO E NOTICIOSO (Rio de Janeiro/RJ), 25 de Novembro de 1854, pág. 03, col. 03, pág. 04, col. 01


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