quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Morro das Cruzes



"Morro das Cruzes

Lendo hontem no Jornal do Commercio, em artigo assignado pelo cidadão Mucio Teixeira, uma breve noticia sobre o Morro das Cruzes e o monge fundador d'ellas, tomei logo a resolução de dar noticia mais completa sobre o tal morro, e seus mysterios, que não deixam de ter opportunidade, hoje, quando todo o mundo procura nos banhos frios remedio para todas as molestias.

Em janeiro de 1848 appareceu n'esta cidade um italiano com uma longa barba que se extendia até o peito, já um pouco nevada por uns cincoenta annos de idade, vestido com uma sotaina de saragoça, e os pés nús sob uns sapatões rusticos.

Era o monge.

Logo de chegada apresentou-se em palacio, pedindo uma audiencia cia [sic] ao general Andréa, que então presidia a provincia.

Apresentando-se a s. ex. inclinou-se humildemente.

O general Andréa, mirando-o de alto a baixo com aquelle ar de soberbia, que infundia não só respeito, como medo ás partes que procuravam fallar-lhe, perguntou ao extranho personagem:

- Quem é você? o que quer? de onde veio? Como se chama?

- Sou italiano; natural de Roma; ando em peregrinação cumprindo uma promessa feita á santa mãi de Deos; chamo-me João Maria Agostim.

- Que mais quer?

- Venho pedir a v. ex. um santo.

- Os santos procuram-se no céo, onde, segundo a nossa crença, ha muitos. Explique-se melhor.

- Em uma igreja dos Sete Povos de Missões, que está em ruinas, existe uma bella imagem de S. Antão; eu venho pedir a v. ex. essa imagem para construir-lhe uma capella.

- Vá ter com o padre Thomé que é quem governa a igreja: eu nada tenho que ver com essas cousas.

O italiano inclinou-se como para beijar a mão do general, que retirando-se, assim o despediu.

Sumiu-se.

E lá se foi o monge em procura do padre Thomé.

O que se passou com o padre nada transpirou.

O monge desappareceu d'aqui, indo sentar o seu acampamento no campestre de Santa Maria, onde formou do morro - um templo.

A sua longa barba e o habito attraiam os simples que o tomavam por um novo Messias. Fazia predicas ao povo todos os dias. Dizendo-se inspirado de Deus, attraia ao lugar uma multidão de crentes, que o adoravam.

Copiou as acções do primeito Christo.

Descobrindo uma vertente abundante dentro do matto, na fralda do monte, fez d'ella a base de seu poder mysterioso, de seus milagres.

Fez abrir uma picada do lado opposto ao em que estava a vertente, pelo morro acima, fazendo d'esta via dolorosa o seu calvario; collocando em pequenas distancias grandes cruzes de madeira toscamente trabalhadas, em numero de 17.

No alto do morro, em um plan'alto, construiu a chamada capella de S. Antão, onde em altar bem preparado jazia a bonita imagem do santo.

Por espaço de trinta e cinco dias permaneci ali, (de setembro a outubro de 1848) a estudar aquelles mysterios.

Junto á primeira cruz, ao entrar-se na picada, depois do sol posto, quando desciam as primeiras sombras da noute, era o povo, que já contava cerca de duzentas pessoas, chamado á oração com o signal de um tiro de pistola.

Ajoelhados todos em frente áquelle symbolo da religião christã rezavam o terço, depois do qual, quando se achava presente o monge, havia a pratica do mesmo aconselhando ao povo a pratica de todas as virtudes christãs; que com fé pedissem a Deus e á mãe santissima o termo de seus males com a applicação d'aquella agua milagrosa de que estavam fazendo uso.

O paciente ao transpor a entrada da picada tirava o calçado e com os pés nús e a cabeça descoberta encetava a marcha por aquella ingremidade só comparaval com a serra das Antas, havendo prezas ás arvores cordas de lonca para ajudar a subida ás pessoas velhas ou fracas.

Ao pé de cada cruz parava o doente, devendo ajoelhar-se para fazer oração.

Para se vencer as 17 cruzes e ainda as orações resadas em cada uma, gastava-se mais ou menos uma hora; chegando-se ao alto, onde se achava o santo em sua capellinha construida de madeira tosca, era estylo tomar assento em um tosco banco, onde se descançava: d'ahi descia-se precipitadamente para o lugar onde apparecia a vertente que saia da rocha a um metro de altura.

Junto á bica havia um cepo onde o doente se ajoelhava para receber a agua que era despejada por qualquer pessoa com uma caneca de metal ali existente, presa por uma corrente. 

Por sobre a cabeça do paciente, ajoelhado, despejava-se a agua com vagar, na porção que cada um queria, mas sempre em numeros impares.

Acabada a operação subia-se ás pressas afim de agitar novamente o corpo.

A roupa só era mudada depois de enxuta naturalmente.

Fico aqui hoje: amanhã porei diante do leitor os diversos doentes que ali foram em busca da saude e o resultado que alcançaram.

Porto Alegre, 14 de março de 1895.

FELICISSIMO M. AZEVEDO."

Fonte: A FEDERAÇÃO (Porto Alegre/RS), 15 de Março de 1895, pág. 01, col. 03-04

"Morro das Cruzes II

Já viu o leitor por que fórma se apresentou na provincia o monge João Maria Agostini; como foram plantadas as cruzes, que deram nome ao morro, e modo por que se banhavam os doentes que recorriam ao campestre junto ao morro.

Visitemos agora o singular acampamento.

Cada visitante, á laia dos que frequentam as praias do mar na época dos banhos, armava sua barraca onde e como queria, formando como um labyrinto, onde era difficil encontrar-se uma pessoa que se procurasse.

Uns tinham barracas de algodão como as dos soldados em campanha, outros iam ao matto onde cortavam madeiras de que construíam choupanas cobertas de sapé, e ainda outros, que tinham carretas, se abrigavam dentro ou por baixo d'ellas.

Reinava ali perfeita fraternidade; a maior decencia e respeito ás familias.

Era bonito de ver-se ao clarear do dia a romaria penitenciaria a subir o morro, ajoelhando-se diante das cruzes a fazer oração. As senhoras, em desalinho, descalças, trilhando um caminho agreste e pedregoso com seus pés delicados; os cabellos soltos, fluctuantes.

A capella regorgitava de devotos, que todos, mais ou menos, depositavam em um cofre forrado collocado no lado do altar o seu obulo. Este cofre era fechado com tres chaves, das quaes uma era guardada pelo monge e as outras duas por dois clavicularios de nomeação e confiança do monge. De tempos a tempos era aberto o cofre, em presença do monge, que depois de recolher o que era precisa para ás despezas do culto, o resto distribuía pelos pobres.

Examinemos os doentes. Ahi vinham em grande quantidade os asthmaticos, que se restabeleciam em poucos dias para serem novamente atacados depois que de lá se retiravam attribuindo á santidade da agua o milagre da cura.

A alguns d'estes que encontrei depois em Porto Alegre, atacados do mesmo mal, perguntava eu, porque não faziam aqui o mesmo remedio. A agua não é a mesma e nem tem as virtudes da do monge.

Os rheumaticos em grande numero apresentaram melhoras sensiveis ou mesmo se restabeleciam. Ainda outros com grandes inflammações nos olhos curavam-se em poucos dias.

Sobre estes doentes da vista preciso aqui abrir um parentheses.

Em 1832 hospedava-se em casa de José Borges da Costa, á rua da Candellaria, um commerciante de Santa Catharina só lhe applicavam remedios em pura perda. Em occasião em que o doente se lastimava, desanimado, apparece á porta de loja de José Borges um pobre velho a pedir esmola, o qual ouvindo o que o catharinense dizia: disse-lhe: não desespere, porque eu ensino-lhe um remedio com o qual o senhor fica bom em oito dias.

- Vejamos, redarguiu o doente.

- Levante-se bem cedo, antes de sair o sol, vá ao chafariz do Paço, colloque a cabeça debaixo da bica do chafariz, deixando jorrar agua sobre a nuca por espaço de cinco a dez minutos, e eu lhe affianço que com oito applicações o senhor estará curado.

E se foi o pobre, depois de ter recebido dois vintens de esmola.

No dia seguinte lá estava o catharineta no chafariz aparando a agua na cabeça, e tal como predissera o pobre, com oito applicações estava radicalmente curado.

Vamos aos outros: ahi vinha um pobre diabo todo syphilitico, com a maior fé, invocando a S. Antão, pedindo ainda o auxilio da Virgem e só lograra a graça de voltar a seus penates com a molestia augmentada; assim os tuberculosos, os de lesões do coração, e outras molestias intestinaes.

Havia tambem uma classe de doentes que restabelecia-se immediatamente; era o dos scismaticos.

Estes, confortados pela fé, rodeados dos mysterios infundidos por aquelle templo augusto que tinha por tecto a abobada celeste, apoderados daquelle respeito religioso consideravam-se curados das molestias imaginarias que tinham na mente.

Havia ainda o barro santo: este barro consistia na lama que se juntava em torno do cepo, onde se ajoelhavam os doentes para receber a agua na cabeça.

Este barro fazia milagres na cura de feridos de todas as especies.

Quem entende um pouco de medicina sabe que basta barrear uma pustula para fazel-a recolher.

Vi ali doentes dissolverem um pouco daquelle barro em um cópo de agoa e beberem; d'esse mesmo barro onde os pustulentos estavam encataplasmando as pernas.

Horror!

Depois de estabelecida esta mixordia no campestre de S. Maria, veiu o monge para a serra de Botucarahy, onde estava estabelecendo novo acampamento.

Na minha volta, quando embarcava no vapor que devia trazer-me a Porto Alegre, appareceu o monge, com duas ordenanças, que vinha a chamado do presidente Andréa.

Chegado aqui foi recolhido ao quartel da polícia, onde permaneceu até a partida do paquete, para o Rio; aqui embarcou recommendado por Andréa ao ministro da justiça, que o mandou ao chefe da policia com recommendação especial.

Li após isto a resposta do chefe de policia ao ministro, dizendo que o monge João Maria Agostini se asylara na rua do Cattete n. 13, com prohibição de curar e fazer predicas. Sic transit gloria mundi.

Porto Alegre, 15 de Março de 1895.

Felicissimo M. Azevedo."

Fonte: A FEDERAÇÃO (Porto Alegre/RS), 18 de Março de 1895, pág. 01, col. 03-04


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