domingo, 7 de maio de 2023

Ajuricaba

 



De fato, o rio Negro era uma região densamente povoada, e por povos culturalmente bastante avançados. De acordo com o padre João Daniel, até 1750 foram descidos à força 3 milhões de índios do rio Negro. "Insuficiente dizer", escreveu João Daniel, "que alguns povoados tinham mais de mil índios e outros tinham tantos que sequer sabiam os nomes de cada um deles".

A resposta dos índios foi exemplar. Em 1720, os portugueses começam a ouvir falar do tuxaua Ajuricaba, a maior personalidade indígena da história da Amazônia. No começo, ele não hostilizou os portugueses. Como aruaque, Ajuricaba exerceu em mais alto grau um dos talentos de sua cultura: a arte da diplomacia. Rapidamente, ele foi unindo as diversas tribos sob uma confederação tribal, o que não era uma tarefa fácil. A estrutura social das tribos da Amazônia, por uma opção histórica, rechaçava qualquer tipo de poder centralizador. Daí a pulverização dos povos indígenas, que os fez presa fácil para os invasores europeus. Poucas foram as experiências de confederação entre os índios em todo o continente americano, mas Ajuricaba logrou unir as mais de trinta nações do vale do rio Negro, em cerca de quatro anos de trabalho de persuasão.

Outro aspecto da liderança de Ajuricaba era a clareza com que ele sabia distinguir os diversos europeus que começavam a entrar em seu território. Do norte, através das montanhas do Parima e dos vales do Orinoco, vinham os ingleses, os holandeses, os franceses e, mais raramente, os espanhóis. Do sul, em grandes levas e com bastante violência, os portugueses. O conhecimento das diferenças entre os europeus ajudou muito no êxito inicial do levante de Ajuricaba. Ele negociou com os holandeses, que lhe forneceram armas de fogo, pólvora e instrutores. Dos ingleses adquiriu pólvora, chumbo e armas brancas. Finalmente, em 1723, ele se sentiu em condições de atacar os portugueses.

Os manau concentravam-se basicamente em duas posições no alto rio Negro, e em diversas malocas pelo rio Urubu e na localidade hoje chamada Manacapuru. Dessas posições, e com o apoio de diversos outros povos, eles destruíram todos os núcleos de colonos do médio rio Negro, obrigando os portugueses a se refugiar no forte da Barra. Ajuricaba também infligiu vários ataques às tribos que apoiavam os portugueses, gerando uma grande confusão na região.

O governador da província, João da Maia da Gama, imediatamente manda uma carta para Lisboa para informar sobre os ataques. Uma bandeira da Holanda, que Ajuricava sempre desfraldava em sua canoa, era o que deixava os portugueses mais irritados. O fato foi testemunhado por Miguel de Siqueira Chaves e Leandro Gemac de Albuquerque, oficiais portugueses que comandavam tropas na área e por eles imediatamente reportado a Belém. Os arquivos holandeses confirmam o contato com os manaus porque, em 1714, a Companhia das Índias Ocidentais Holandesas enviou o comandante Pieter van der Heyden numa expedição à região do alto rio Branco. Van der Heyden deve ter-se encontrado com os manau, pois logo a seguir alguns guerreiros dessa tribo deram de aparecer no Essequibo, assustando os colonos holandeses. Essas incursões pelo extremo norte começaram a ficar comuns, até o levante de 1723, quando cessaram para sempre, com a quase extinção da tribo guerreira. Maia da Gama assim escreveu:

todas as tribos do rio e com exceção daquelas que estão conosco e contam com missionários são assassinas de meus vassalos e aliadas dos Holandeses. Elas impedem a propagação da fé e continuamente roubam e assaltam meus vassalos, comem carne humana, e vivem como bestas, desafiando a lei natural. [...] Esses bárbaros estão bem armados e amuniciados com armas dadas pelos holandeses, e outras conseguidas por eles e tomadas de homens que foram até lá e intentaram assaltá-los, desobedecendo minhas ordens. Eles não apenas têm o uso das armas mas também se entrincheiraram em cercados de pau e barro com torres de vigilância e defesa. Por essas dissimulações eles se arrogam a um maior orgulho e se julgam no direito de cometer todos os excessos e matanças.

A resposta de Lisboa foi autorizar o governador Maia da Gama a lançar uma expedição punitiva, mas os jesuítas tentaram uma solução negociada, e o padre José de Sousa foi enviado ao rio Negro para propor uma conciliação. O padre conseguiu fazer Ajuricaba trocar a bandeira holandesa pela portuguesa, viu o líder jurar obediência ao rei de Portugal e recebeu a promessa de libertar cinquenta escravos em troca do pagamento de resgate. Padre José de Sousa ficou muito impressionado com Ajuricaba, e relatou ao governador que ele era um homem ainda jovem, muito orgulhoso e arrogante, que se denominava governador de todas as tribos e que pessoalmente tinha-se declarado responsável por todos os agravos contra os portugueses. Se Ajuricaba fosse convencido a trabalhar para os portugueses, o rei teria nele um grande aliado.

Ajuricaba, no entanto, não estava interessado em se aliar a nenhum europeu. E, mal o jesuíta deixou o rio Negro, os ataques recomeçaram, e Ajuricaba nunca libertou os cinquenta escravos, embora tenha recebido o dinheiro. Em 1728, depois de receber a aprovação dos próprios jesuítas, Maia da Gama organiza uma poderosa força punitiva, sob o comando do capitão João Paes do Amaral. Sobre isso, Maia da Gama registrou:

Ficou decidido que eles primeiro dariam busca ao bárbaro e infiel Ajuricaba. E nossa gente o surpreendeu em sua aldeia, mas ele encetou uma defesa antes que o cerco se completasse. Depois de alguns tiros de uma peça de artilharia que nossos homens tinham levado, ele resolveu escapar e abandonar a aldeia acompanhado por alguns maiorais. [...] Nossos homens saíram em perseguição e mantiveram escaramuças com ele cada vez que ele entrava nas vilas de seus aliados. O bárbaro chefe Ajuricaba e mais seis ou sete de seus chefes aliados foram finalmente presos e duzentos ou trezentos prisioneiros foram pegos junto com ele. Quarenta desses serão trazidos para pagar os custos da expedição feitos pelo tesouro de Sua Majestade e mais trinta para a coletoria real.

Ajuricaba, posto a ferros junto com outros guerreiros, com eles foi transportado para Belém, onde todos seriam vendidos como escravos. Foi então que o grande líder manau fez o gesto que lhe garantiu um lugar na história e no coração do povo da Amazônia. Os portugueses descreveram assim o seu ato desesperado:

Quando Ajuricaba estava vindo como prisioneiro para a cidade, e já estava em suas águas, ele e seus homens se levantaram na canoa em que se encontravam acorrentados, e tentaram matar os soldados. Esses tomaram de suas armas e bateram em alguns e mataram outros. Ajuricaba então pulou no mar com um outro chefe e não reapareceu mais vivo ou morto. Pondo de lado a pena que sentimos pela perda de uma alma, ele nos fez um grande favor aos nos liberar da obrigação de tê-lo prisioneiro.

Ajuricaba pulou da canoa de seus opressores para as águas da memória popular, libertando-se dos grilhões e ressuscitando como um símbolo de coragem, liberdade e inspiração.

Em 1729, os índios do rio Negro novamente se rebelam, sob o comando do manau Teodósio. Depois de alguns combates, Teodósio é preso e enviado a Lisboa. Novamente, em 1757, outro líder manau forma uma federação de tribos no rio Negro, ataca as vilas de Lamalonga e Moreira, e ocupa a ilha de Timoní. A rebelião é sufocada violentamente, mas a lição de Ajuricaba jamais é esquecida.

A figura de Ajuricaba ficou na memória popular. Repercutiu nas ações dos diversos líderes indígenas que se rebelaram e enfrentaram os colonizadores, mesmo em desvantagem. Um século depois de sua morte, o nome do guerreiro seguia inspirando a rebeldia. No dia 16 de agosto de 1835, ao ser empossado presidente do Pará, o líder cabano Eduardo Nogueira Angelim fez um discurso emocionado e de grande significado: "Corajoso povo do Pará, valentes defensores desta terra e da liberdade! Depois de nove dias de fogo assassino somos os senhores desta bela cidade de Belém. [...] Viva os descendentes de Ajuricaba. [...] Viva o povo livre do Pará!"

Fonte: SOUZA, Márcio. História da Amazônia: do período pré-colombiano aos desafios do século XXI [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Record, 2019, pág. 147-150.

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