terça-feira, 7 de agosto de 2018

Os depoimentos de Thomaz Staveley - Parte 02



Em meados do século XIX, a Grã-Bretanha estava empenhada em suprimir o tráfico de escravos da África para a América, tanto que, em 1845, foi promulgado a Bill Aberdeen. Transcrevemos aqui um importante conjunto de depoimentos realizados em 1849 sobre a questão, apresentados junto à Câmara de Comuns na Grã-Bretanha, realizados por um membro da dita câmara, o cavalheiro Sir Thomaz Staveley (Lord Howden) - membro da comissão encarregada de tratar a questão. Muitas informações sobre a questão do tráfico e escravatura no Brasil.

"P - Não são construidos em Africa muitos desses navios?

R - Parece-me que não. Um grande numero delles são trazidos dos Estados-Unidos, e comprados para o trafico; porém a maior parte são construidos no Rio de Janeiro á vista do governo. No tempo que ali estive sahio do porto em viagem negreira um magnifico brigue chamado Galgo, do porte de 400 toneladas, com a pôpa dourada e varandas no tombadilho; tendo obtido licença das autoridades para largar de noite, contra o regulamento do porto, afim de escapar á vigilancia de um brigue de guerra encarregado por mim de o observar. Esse brigue era uma excepção á maior parte das embarcações negreiras, mal construidas, que quasi sempre ao chegar de Africa estão, não só em estado de ir a pique, mas com faltas de agoa e mantimentos, e com alguma doença epidemica a bordo.

P - Qual é pois a opinião de V.S. relativamente ao effeito de se estacionarem cruzadores para interceptar os navios procedentes da costa d'Africa? Os principaes pontos de importação do Brasil donde se derivão as rendas publicas são dous ou tres dos principaes portos; supponhamos que o governo britannico, como potencia beligerante, bloqueava esses portos, pelo não cumprimento dos tratados da parte do governo brazileiro, não habilitaria isso o governo para fazer cumprir os tratados, se é que elle tem essa vontade?

R - É essa pergunta a que eu não quizera responder; sómente exponho factos, e não posso, na minha posição peculiar, tomar sobre mim a responsabilidade de responder publicamente a essa pergunta. Direi comtudo que os direitos da alfandega do Rio de Janeiro compõem um terço de toda a renda publica do Brasil, e que em consequencia da grande falta de estradas, de vasta extenção do imperio, e pôr se acharem situadas á beira-mar as principaes cidades, não só toda a permutação de gêneros, mas tambem de idéas faz-se ao longo da costa, de maneira que um bloqueio, além das suas considerações fiscaes, poria o Império todo em confusão.

P - Julgais que o porto do Rio de Janeiro póde ser facilmente bloqueado?

R - Quanto a simples questão do bloqueio, deixando de parte considerações commerciaes comnexas com o nosso paiz, creio que não seria isso difficil. Póde ser mais facil e mais efficazmente bloqueado do que muitos outros portos; do que Buenos-Ayres, por exemplo, onde o bloqueio era uma mera farça.

P - Tem V.S. alguma idéa do estado da sociedade brazileira nas comarcas mais remotas?

R - Consta-me que são affaveis, e que nada póde exceder á sua hospitalidade. Ha uma grande differença entre o Brazileiro do sertão e o Brazileiro camponez, e o que habita nas cidades.

P - Como vivem elles no interior do paiz, estão os fazendeiros situados longe uns dos outros?

R - Sim, conforme a natureza do solo ou outras circumstancias accidentaes.

P - E não existe algum receio no animo desses homens rodeados de numerosos escravos?

R - Por ora penso que não, pois ouço dizer que muitos dormem com as portas e janellas abertas.

P - Então não ha que esperar que esse receio concorra para fazer cessar o trafico?

R - Presentemente não; póde ser que a idéa do perigo que os ameaça seja suggerida aos Brazileiros, mas elles são naturalmente descuidados e apathicos, e não creio que na grande massa do povo exista muito susto a esse respeito.

P - Não houve ultimamente na camara de deputados uma grande discussão sobre o trafico?

R - Ha um partido abolicionista no Brasil; pelo menos cinco ou seis deputados se levantão todos os annos, e fazem discursos que até no parlamento britannico passarião por muito eloquentes e philantropicos; como em todas as nações meridionaes, é pasmosa a facillidade de fallar que possuem os Brazileiros.

P - A que classe pertencem os abolicionistas?

R - A todas as classes quando elles julgão conveniente fallar como abolicionista, e muitas vezes é esse thema um pretexto de partido; mas não faltão homens probos e illustrados que encarão com magua a probabilidade de vir a ser o seu paiz inteiramente africano, e de ficar sem cultura, a menos que se adopte algum novo systema de trabalho.

P - Não são esses individuos fazendeiros?

R - Mui raros fazendeiros são abolicionistas.

P - M. Baudinel no seu depoimento perante a camara dos communs disse que a grande repressão do trafico foi sempre effeito da existencia dos nossos cruzadores sobre a costa do Brazil; sois por ventura de opinião contraria sobre este ponto?

R - Duvido que os cruzadores estacionados sobre a costa do Brazil, sem alguma simultanea combinação com outros sobre a costa d'Africa produrão officio algum decisivo; poedrião estorvar algum tanto o traffico apresando um ou outro navio negreiro, porque alguns necessariamente havião de ser capturados. Se pudessemos obter do governo brazileiro que cooperasse comnosco por meio de providencias internas, poderia conseguir-se a repressão desejada, mas pelos nossos unicos esforços, creio que nunca a poderemos alcançar. Talvez acudes noticia de que um regente chamado Feijó, clerigo corajoso e não menos illustrado, propos, ha 16 ou 17 annos, não só que o traffico fosse declarado pirataria, segundo o modo porque o entendemos, mas até que se lhe impuzesse a pena de pirataria internacional contra o hostii humanae generis, enforcando os deliquentes. Esta proposta porém foi abafada no conselho de estado, no qual reside de facto o governo real e permanente do Brasil, pois, além de ser irresponsavel, tem um poder immenso, e pela constituição soma conhecimentos de todos os negocios de paiz.

P - Não ha na assembléa legislativa um partido desejoso de cumprir os tratados feitos com a Inglaterra e com outras potencias?

R - Sim, ha; e existe tambem um pequeno partido de abolicionistas que considerão o traffico de escravos como uma maldição e desgraça para a sua patria.

P - Ha alguma parte do imperio onde mais que em outras prevaleça o desejo de conservar o traffico?

R - Sim, no Rio de Janeio onde estão concentrados os grandes capitaes e os negociantes interessados no traffico.

P - Não são tambem todos os fazendeiros interessados na continuação do trafico?

R - Os fazendeiros são quasi todos devedores dos capitalistas, e até aqui não tereis achado outro meio para cultivar as suas terras senão pela agencia dos importadores de Africanos.

P - Qual é o seu medo de pensar relativamente á futura importação de escravos?

R - Sem duvida o seu modo de pensar indica é que se vós não podeis substituir outro methodo, e se o clima não permite outro trabalho, forçoso é que tenhão escravos.

P - Augmentou-se essa necessidade em consequencia da mudança occorrida no consumo do assucar nesse paiz?

R - Crerei que sim.

P - Se elles não tivessem a mesma facilidade para importar novos escravos, não vos parece que porião mais cuidado em cria-los?

R - Talvez, é uma natural consequencia.

P - Se acaso o conselho de estado quizesse severamente pôr termo á continuação do traffico, pensais sós que teria bastante poder para o conseguir?

R - Te-lo-hia sem duvida mais que qualquer outra corporação, porém o facto é que de todas as corporações é o conselho de estado que tem sido até aqui mais hostil ao ajuste de uma negociação com a Inglaterra.

P - Sabe V.S. se o recente augmento de importação tem contribuido para se cultivarem terras virgens, ou se tem sido destinado para continuar a cultura das terras já lavradas?

R - Estou que só tem servido para manter o cultivo dos terrenos velhos. A população branca multiplica-se mais lentamente, e ainda é mais vagoroso o augmento da população negra no interior do paiz.

P - Mas ha uma quantidade illimitada de territorio que podia ser aproveitado para a producção do assucar?

R - O territorio do Brazil é quasi tão grande como a Europa, e os productos naturaes que delle podem tirar-se excedem á maginação. Não creio que haja producção alguma que não possa prosperar, mineral nenhum que se nao acha-se, nem cousa alguma que se não possa cultivar em alguma parte do Brazil.

P - Tem V.S. opinião formada sobre qual seria o effeito provavel da remocção da esquadra que actualmente põe tropeços ao traffico?

R - Ao principio resultaria um grande incremento na importação de escravos para o Brazil; mas é provavel que a aprehensão de perigo, que por ora é mui pouca, operasse vigorosamente quando os Brazileiros attentassem no immenso numero de escravos introduzidos no paiz. Tambem poderia acontecer que o preço delles baixasse tanto que fizesse cessar por algum tempo a importação.

P - Podeis suggerir alguns melhoramentos que se possão fazer no systema actual, quer relativamente á esquadra, quer aos cruzadores que cooperão com ella?

R - Escrevi uma carta particular a Lord Auckland em resposta a outra que me elle dirigira sobre esse assumpto, hei de procura-la, e a apresentarei, se não houver objecção em contrario.

P - Quanto ao estenso recife paralello com a costa, a que alludistes, por ventura o intervall entre elle e a terra é tal que admitta cruzadores, e principalmente barcas de vapor que o percorrão em toda a sua extensão?

R - Alguns dos vapores do Rio de Janeiro navegão dentro do recife, mas não os novos; os botes e outras embarcações maiores do paiz o fazem; mas até que tenhamos maior experiencia; não creio que os nossos cruzadores se julgarão justificados em seguir os negreiros até onde estes entrão a salvo. O systema de signaes de que usão em terra é levado a um gráo de perfeição tal que causa admiração quando se considera a grande extensão da costa. As canôas sahem ao mar a vigiar, e muitas vezes são as jangadas que fazem este serviço, como na Bahia e Pernambuco, de modo que são quasi invisiveis. Assim que descobrem nos cruzadores, tocão immensos chifres de boi que se ouvem em terra, e subito apparece uma fogueira de signal sobre um outeiro, e se repete ao longo da costa Não ha nada mais habilmente arranjado; todos os preparos do traffico tem sido levados a um gráo de perfeição que faz pasmar, e que só o immenso lucro que elle deixa póde explicar. Os escravos são agora desembarcados em grandes botes de fundo chata, que se [ilegível] com extrema rapidez, de maneira que o navio negreiro até nem precisa ancorar; e depois de descarregar os escravos, e talvez parte da sua tripolação. segue para o Rio de Janeiro, Bahia, Santos ou Santa Catharina; em lastro.

P - Não ouvistes fallar em vapores construidos ou comprados para o serviço do traffico?

R - Quasi em frente da minha casa, no Rio de Janeiro, se construirão vapores na fundição da Ponta d'Arêa, para serem empregados no traffico. Constou-me que alguns vapores trouxerão carregamentos de 1.500 escravos; e ser de certo que um navio de vela, no anno de 1847, fez cinco viagens redondas á Africa, e desembarcou a salvo todos os seus carregamentos. Se este navio fez cinco viagens, um vapor poderia fazer oito.

P - Podeis dizer a quanto orçarão os lucros desse navio?

R - Segundo o calculo mais baixo, não podia elle ter trazido menos de tres mil escravos, que vendidos uns por outros á razão de 40 libras esterlinas por cabeça, perfazem 120 mil libras (mil e dusentos contos de réis); e toda a despeza andaria por um quinto do producto liquido.

P - Nas discussões das camaras legislativas do Brasil, sobre o traffico de escravos, por ventura os advogados e patronos deste nefando commercio procurão dar-lhe algum collorido de philantropia?

R - Os abolicionistas fazem soar contra o traffico os grandes principios da moral e da humanidade, e declarão que é uma pesta, um flagello que ha de destruir o paiz; os defensores do traffico allegão a imperiosa necessidade de escravos, e pretendem que não temos o direito de legislar para elles. Mas são bem raros os debates sobre esta questão os discursos dos abolicionistas são as mais das vezes pretextos de opposição, antes do que expressões de verdadeira philantropia.

P - Não existe pois no Brasil genuino sentimento de antipathia contra a escravidão?

R - Penso que não, excepto no peito de poucos homens escolhidos; ao mesmo tempo, como já mencionei, ha cidadãos illustrados que realmente temem que a sua patria tenha a ser, cedo ou tarde, africana em vez de americana, e que os Brazileiros venhan a cahir em compacto barbarismo, e se tornem um segundo S. Domingos, se acaso se não passe um termo á importação dos escravos."

Fonte: O RIO-GRANDENSE (RS), edição de 27 de Abril de 1849

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