terça-feira, 25 de julho de 2017

A escravidão em Pelotas


Fonte: SIMÃO, Ana Regina Falkembach. Resistência e acomodação: a escravidão urbana em Pelotas, RS (1812-1850). Passo Fundo: UPF, 2002, p. 62-63.

"Era muito grande o número de trabalhadores escravizados que trabalhavam nas indústrias do charque pelotense. Tão expressiva era a população cativa que vivia nas charqueadas que chegava a preocupar a classe senhoril, já que a concentração de trabalhadores escravizados num mesmo local poderia facilitar rebeliões. Em vários documentos da época, constata-se a inquietação da elite pelotense com relação à multidão de cativos e à possibilidade de insurreição.

Em ofício expedido pela Câmara Municipal de São Francisco de Paula, em 1835, foi relatada a apreensão que os charqueadores da vila viveram durante alguns meses de 1835. Sabe-se que, nesse ano, na cidade de Salvador, houve uma insurreição escrava, conhecida como 'Malê', que teve grande repercussão nacional. O referido documento aponta para o temor dos charqueadores em receber cativos que fossem oriundos da Bahia, pois poderiam ter estado direta ou indiretamente envolvidos na insurreição. Dizia o documento ser 'evidente que se tais escravos vieram para Pelotas seriam vendidos a maior parte para as charqueadas que existem neste município, onde contém dois a três mil cativos, quase em contato uns com os outros, pela proximidade em que se achavam ditas charqueadas, receando-se deste modo que eles venham engrossar o número dos desmoralizados, apesar do cuidado e vigilância dos donos das ditas charqueadas (...)'.

Na primeira metade do século XIX, 'a charqueada trouxe não apenas a riqueza, mas o adensamento populacional, pois cada grande estabelecimento contava, pelo menos, com mais de cem pessoas'. À medida que o número de trabalhadores livres e escravizados da indústria saladeiril aumentou, o desenvolvimento urbano sofreu impulso correspondente. Em verdade, com o desenvolvimento das charqueadas, vários moradores da região que enriqueceram com o comércio do charque construíram luxuosas casas na nascente cidade, onde residiam sobretudo na entressafra charqueadora. O espaço urbano tornou-se, assim, local de sociabilidade, de eventos culturais e, sobretudo, de prestação de serviços para as comunidades das vizinhanças.

Se a sofisticação e a elegância foram características do cotidiano das população senhoriais de Pelotas do século XIX, não se pode dizer o mesmo quanto às condições de vida e de trabalho dos cativos da região, sobretudo nas charqueadas.

Em 1820, ao visitar São Francisco de Paula, Saint-Hilaire relatou: 'Nas charqueadas os negros são tratados com muito rigor. O Sr. Chaves é considerado um dos charqueadores mais humanos, no entanto ele e sua mulher só falam a seus escravos com extrema severidade, e estes parecem tremer diante de seus patrões (...)'. O viajante francês disse ainda: 'A Dona (...) me cumulou de gentilezas até o último instante. Porém, esta mulher, que me parecia tão boa e meiga, apenas voltava ao interior da casa, e eu já ouvia gritar a plenos pulmões e maltratar suas escravas'. Para Nicolau Dreys, 'uma charqueada bem administrada era um estabelecimento penitenciário'.

Pelotas foi, definitivamente, produto da produção charqueadora. Eduardo Arriada lembra: '(...) enquanto não houve o surgimento e estruturação das charqueadas na região de Pelotas, não ocorreu o menor vestígio de um esboço de urbanização, esta só foi aparecer depois de criadas as condições socioeconômicas, fruto do mundo do charque'.

Nos próprios rigores da vida servil a que estavam sujeitos os trabalhadores escravizados na produção charqueadora e urbana e das possibilidades ensejadas sobretudo por um trabalho ou habilidades especializada, nascia o desejo de alcançar a alforria, tema de nosso próximo capítulo." 



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