sábado, 17 de abril de 2021

O Saci - um estudo de 1882 - Parte 02

 



" - Patrão, eu, por mim, confesso que não gosto de repetir, de noite, as historias em que toma parte o Sacy; pois é difficil que, fallando-se-lhe na pelle, o maldito não nos pregue alguma de suas artes!

'Eu estou prompto a arrostar com todos os perigos de uma jornada pelo meio dos sertões, transpôr os rios a nado, e dar caça ás onças nos matagaes mais medonhos; porém, ouvindo o nome do Sacy, faço immediatamente o signal da cruz, e espero-lhe pela pancada, pois é seguro que o endiabrado anda já perto de nós, e talvez escute por trás daquelles espinheiros, disse o tropeiro apontando para uma cerca vizinha; a historia que, com indiscripção talvez, prometti contar ao patrão, e que em todo o caso vou cumprir, preparando-me desde já para o que me ha de custar.'

Depois deste preambulo, o supersticioso sertanejp, porém bravo e rude campeador de tropas, tornou a reacender a ponta do cigarro, que se lhe havia apagado; e puxando algumas fumaças, correo a mão pela testa, e disse, fitando-me com ar distrahido:

' - Olhe, meu amo, a historia que lhe vou contar não é inventada por mim para entreter os companheiros, nem tão pouco me foi contada por alguma velha, dessas que conhecem as cantilenas de adormecer crianças. Não senhor.'

'Esta historia foi passada com um amigo meu, cuja memoria não posso recordar sem saudade.'

E pela face requeimada do rude narrador dir-se-hia que uma lagrima se deslisava lentamente, sumindo-se-lhe na barba espessa, por onde elle passou duas ou tres vezes vagarosamente a mão.

Depois continuou:

' - Perto da cidade de Campos existia, ainda ha pouco tempo, uma rustica casinha, de sapé, assombreada por alguns pés de goiabeiras, e ao lado de um bosque de bananeiras, que se destacava no meio da estrada por seu aspecto agradavel, e ainda mais por ser a morada de uma das mais bonitas filhas do povo, que se tem visto entre as formosas campistas, conhecidas em toda a parte do interior pela sua beleza e espirito.'

'Margarida se chamava a filha do Manoel do Pouso, antigo tropeiro de uma fazenda do logar, e agora entrevado em uma cama, onde era assistido pela pobre menina, que se desfazia em desvelos para mitigar as dôres do seu desgraçado pai.'

'Margarida era uma verdadeira flôr dos campos, a embalsamar com seu perfume agreste o ar livre das campinas e as doces solidões do ermo.'

'Teria, quando muito, dezesseis annos de idade. Era alta, esbelta, de corpo regular, pé mimoso, cintura delicada, mão pequenina e o seu rosto sympathico, entre o claro e o moreno, tinha essa côr avelludada do pecego maduro, que parece exhalar perfume e embriagar de gozo a quem contempla o saboroso fructo.'

'Temente a Deus como ella só. Olhe, patrão, era raro o domingo em que faltava á missa da fazenda proxima, e ninguem com mais devoção assistia ao santo sacrificio.'

'Ella era em casa mais do que uma filha desvelada daquelle velho invalido, que já ha muitos tempos, não prestava para si nem para ninguem. Margarida era um anjo, uma providencia, que trabalhava dia e noite para sustentar seu desgraçado pai, e velar em que lhe não faltasse alguma cousa para mitigar suas constantes e insuportaveis dôres.'

'Todos os caminheiros, habituados a navegar pela estrada que vae de Campos a Nictherohy, passando em frente da casa do Manoel do Pouso, não se esquecião de pedir uma braza de fogo para acender o cigarro, ou um copo de agua, parando um minuto á porta, para vêr a feiticeira Margarida, que, levantando-se um instante de costura, ia em pessoa satisfazer o pedido dos seus numerosos apreciadores.'

'Entre os que erão mais assiduos notava-se um primo de Margarida, que tinha, pelo seu parentesco, entrada em casa, e merecia plena confiança do velho, apezar da má reputação deste rapaz barulhento e dado á bebidas, conhecido por um dos maiores desordeiros de toda a visinhança, e a quem erão attribuidos, em voz baixa, alguns crimes, que tornavão a quasi todos, e muito especialmente a Margarida, suspeita e desagradavel a sua presença.'

'Timotheo era carreiro de uma fazenda da outra banda do Parahyba, e quasi sem interrupção, uma ou duas vezes no mez passava com os carros na estrada.'

'Escusado é dizer, que não se esquecia nunca de entrar em casa de sua prima, e, offerecendo ao velho um pedaço de bom fumo de Minas, passar algumas horas olhando para Margarida, enquanto as carretas chegavão uma após outra, e descansavão a sombra durante as horas calmosas do dia.'

'Margarida sentia um terror indescriptivel com a presença deste antipathico côrtejador. Mais de uma vez esteve para communicar a seu pai este involuntario receio, mas temendo inquietar o pobre velho, que tanto precisava de repouso e tranquilidade, guardava comsigo o segredo, e contentava-se em chorar ás vezes no silencio de suas meditações, sem ella mesma saber explicar porque.'

'Até este momento Timotheo ainda se não atrevéra a dizer-lhe uma palavra revelando-lhe o sentimento, que seus olhos, todavia, não podião negar em sua expressão sinistra.'

'Margarida estava quasi sem arrimo nem protecção no mundo. Seu pae, no catre da miseria, velho e enfermo, não lhe podia prestar o amparo, que precisava uma donzella honesta na quadra mais melindrosa e fragil da existencia.'

'Seu primo Timotheo era para ella mais um objecto de terror, que de confiança e protecção.'

'O futuro desenhava-se, e portanto, á pobre Margarida, pintado com as mais negras e assustadoras côres.'

'Corrião as cousas neste estado, quando uma noite, indo Margarida com algumas companheiras á romaria das Cruzes, pois era nos principios do mez de Maio, encontrou ella nessa perigrinacção nocturna, um camarada novo de um dos moços de uma das fazendas mais abastadas de Campos; rapaz de seus vinte e quatro annos, vestido de preto, e de olhos fascinadores, que lhe causou uma singular impressão,e a fez sentir um abalo no coração, que lhe era até então desconhecido.'

'Justino, que assim se chamava elle, estava, quando ella chegou ao lado da cruz florida, de pé junto deste sacrosanto monumento de religião e piedade, com os braços cruzados sobre o peito, a cabeça levemente abatida, e os olhos rasos de lagrimas.'

'A sua atitude denotava a mais profunda concentração; e quem sabe se talvez orava por alma de algum ente querido, que perdera por ventura nos melhores annos de sua juventude?'

'Quando Justino acordou de seu lethargo, levantou os olhos, e deu com o rosto sympathico de Margarida, que o fitava, mas que a este movimento abaixou, córando, a vista.'

'Alguma cousa de mysterioso se passou esponteneamente entre estes dois entes, Margarida sentio um rubor de fogo incendiar-lhe subitamente as faces, e levou involuntariamente a mão ao coração, Justino affastou-se para deixar approximar-se a encantadora menina, e ao roçar de seus vestidos, o mancebo quasi soltou um grito de admiração e assombro.'

'Não trocárão uma palavra, e pouco depois Margarida estava ao lado de seu velho pai, e Justino com o pensamento embebido em sua imagem, retirou-se tambem, tendo ambos naturalmente aquella noite esses sonhos que, tenho ouvido dizer, fazem a delícia e o tormento dos namorados.'

'Depois deste singular encontro, o mancebo passava quasi todos os dias por casa de Margarida: olhavão-se fixamente, e depois elle ainda parava duas ou tres vezes no caminho, alongando a vista pela estrada, e verificando se ainda se conservava, nos limites da pequena janella, a cabeça seductora da gentil menina.'

'Um dia Justino teve um assomo de coragem, e foi pedir fogo, parando um instante á porta da rustica casinha de sapé. Margarida satisfez ao seu pedido, côrando e sorrindo.'

'Pouco tempo depois, Justino entrava em casa de Manoel do Pouso, e a noticia, de que havia pedido em casamento a bella Margarida, espalhou-se por toda a visinhança, enchendo a todos de contentamento, pois era difficil deixar de sympathisar com um par tão gracioso.'

'Timotheo, quando soube do occorrido, empallideceo de raiva. Seus olhos negros faiscarão como dois carbunculos abrazados. E houve quem bem attentou, que ouvindo esta noticia dos labios de sua prima, o feroz sertanejo levou involuntariamente a mão ao punho da faca de matto, que trazia segura no cinto.'

'Desde este dia Timotheo não tornou mais a apparecer em casa do Manoel do Pouso. Constou que tinha largado a fazenda, e ninguem soube mais noticias delle.'

'Margarida e Justino vivião nesse crepusculo abençoado da felicidade certa, que são os dias mais venturosos que se passão na terra, e que se pôde contar por afortunado quem ao menos vez os gozou.'

'No entanto, para que a ventura não seja completa neste mundo, a sua tranquilidade havia sido algumas vezes perturbada por incidentes, que a muitos parecerão sem valor, porém a mim, que já conheço muito as desgraças da vida, não pódem escapar sem uma interpretação diversa.'

"Uma vez, amanhecendo o dia, Margarida foi abrir a porta, e recuou com assombro diante de uma grande cruz negra, que mãos desconhecidas havião pintado de noite, e que inspirava terror pelas suas funebres e gigantescas proporções.'

'Mais de uma noite, Margarida, chegando por acaso á janella dos fundos da casa, que deitavão para a capoeira, tinha visto uma luzinha azul correr tremula por entre a ramagem, e extinguir-se lentamente no meio dos balseiros.'

'Outras occasiões, a pobre moça era despertada de seus sonhos innocentes pelo griot indefinivel de um ente, que parecia sobrenatural, e vinha passar em horas aziagas perto de sua pousada.'

'Finalmente, muitos outros indicios deste genero levarão a crer a toda a visinhança, que estas artes não podião ser, senão diabruras de algum Sacy.'

'Estes acontecimentos, apezar de pouca importancia que á primeira vista podião ter, exercérão um effeito terrivel na alma impressionavel de Margarida. Sentio um vago presentimento em seu coração, e nas horas de sua maior felicidade, não era raro ver numa lagrima confundir-se com seus sorrisos amorosos.'

'Marcou-se definitivamente para dalli a oito dias a ceremonia do noivado. Todos os temores parece que se havião desvanecido com esta decisão suprema. O antegozo das venturas do coração produz uma embriaguez nos sentidos, que faz esquecer tudo mais que nos rodeia na terra.'

'No dia desta deliberação, Justino foi avisado para comparecer dalli a dois dias em um logar adiante da lagôa de Carapebús, onde um antigo conhecido seu o esperava, para communicar-lhe cousas importantes ácerc de um legado que tinha de receber.'

'Margarida não o queria deixar partir; mas o negocio era urgente e a força do destino ha de infalivelmente cumprir-se.'

'Justino partio, e era já á tardinha quando chegou perto da lagôa de Carapebús.'

'Não sei se o patrão conhece a lagôa de Carapebús? disse o tropeiro historiador fitando-me; e continuou animando-se; pois é um logar terrivel. É um dos passos mais arriscados e perigosos que eu conheço por estas bandas do interior, e o que mais accrescenta ainda esta desfavoravel circumstancia, é a solidão do sitio e o aspecto agreste e quasi funebre da natureza que o rodeia. As aguas da lagôa são negras, pesadas e grossas, revoltas continuamente pelos jacarés que vivem nos seus limos, e a todo o momento se veem alçar a cabeça por entre os arbustos e os combros da terra, que apparecem surgindo do seio daquelle abysmo lurido e verde-negro, comparavel sómente com as caldeiras do inferno.'

'Justino quiz atravessar a ponte que existe no meio da lagôa, e para a qual se caminha sobre dois aterrados, que estão debaixo da agua; porem esta tinha subido a tanta altura com a enchente, que julgou mais seguro chamar o canoeiro da margem opposta e transpôr assim este difficil obstaculo do caminho.'

'O canoeiro approximou-se, e Justino entrou com toda a precaução dentro da canôa, a qual, rapida como uma flecha, varou o espaço que a separava da margem contraria e foi encalhar na arêa, levada por um impulso assombroso.'

'Eis-aqui, patrão, o que foi narrado pelo canoeiro á noiva do desgraçado Justino no dia seguinte ao desta malfadada viagem.'

'Ninguem sabe o que mais se passou; mas o certo é, que o desditoso foi encontrado, no seguinte dia, morto dentro do matto, com uma grande ferida no coração, e o corpo coberto de vergões negros, sem que tenha sido possivel descobrir quem foi o seu matador.'

- Mas emfim, perguntei eu, a policia e as autoridades que fructo colhèrão das pesquizas, que um facto desta natureza deve naturalmente originar?

- Nenhum, meu amo; até hoje ainda se não sabe mais do que eu acabo de lhe contar. Porém, entre os nossos companheiros corre como certo que o assassino, o desalmado que commetteu tão damnado crime, não podia ser outro senão... o Sacy.

- E Margarida, que destino teve?

- O velho morreu de desgosto, accrescentou o meu condescendente narrador, como é facil de crer pelo estado em que se achava, e já no derradeiro quartel da vida. E Margarida... a pobre Margarida enlouqueceu!... Olhe, patrão, quando sou obrigado a passar por aquella casinha, hoje desmantellada, e vejo a infeliz moça coberta de andrajos, com os cabellos desgrenhados e os pés nús, cantando toadas sem sentido, e vivendo da caridade dos pobres como eu, que de vez em quando lhe dão uma esmola, sinto-me commover de tristeza e rebentarem-me as lagrimas dos olhos, considerando tamanha desventura! Era um favor bem grande, se Deus a chamasse para a sua santa morada!

Terminada esta narração, os tropeiros levantárão-se, offerecerão-me uma cuia de café, que aceitei com prazer, e forão depois deitar-se silenciosos, em quanto eu tracei nas paginas da minha carteira de viagem os apontamentos que hoje entrego á benigna curiosidade dos leitores.

A.E. ZALUAR."

Fonte: VASSOURENSE: PERIODICO IMPARCIAL, NOTICIOSO E LITTERARIO (Vassouras/RJ), 07 de Dezembro de 1882, pág. 01-02


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