"No mês de julho de 1987, oito apenados, mantendo 31 reféns, se amotinaram no Presídio Central de Porto Alegre. Após horas de negociações com a polícia, todos fugiram do estabelecimento em automóveis que haviam sido cedidos pelas autoridades em troca da libertação de reféns. O 'dia de terror no presídio' (ZERO HORA, 29/07/1987, p.1), como a época foi noticiado, deixou duas pessoas mortas e inúmeras outras feridas. Já no início de janeiro de 1988, vinte presos da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), no município de Charqueadas/RS, iniciaram uma rebelião, da qual três agentes penitenciários e um apenado terminaram mortos. No dia seguinte, 620 presos deflagraram greve de fome no PCPA. Esses acontecimentos se inscreveram em um cenário mais amplo, de organização de um novo grupo criminal nos presídios rio-grandenses: a Falange Gaúcha, que emergia na esteira do Comando Vermelho, composta por apenados envolvidos com a Falange Vermelha Rogério Lemgruber, criada ainda na década de 1970 no Estado do Rio de Janeiro.
O aparecimento da Falange Gaúcha (ou Falange) se deu após um pacto firmado por apenados envolvidos no motim de 1987 (e por alguns outros apenados, que os apoiaram ou lhes eram próximos), e tinha como objetivo financiar dois projetos: o investimento em fugas vindouras, e a criação de um 'caixa' comum, que seria usado para financiar eventuais ações criminosas e melhorar as condições de vida dos aliados presos (especialmente pela compra de vantagens no PCPA). A vivência nos presídios se encontrava, naquela ocasião, instável: em março de 1991, uma disputa entre grupos menores no Central provocou a morte de seis apenados e ferimentos em 22. Em outubro, na Penitenciária Estadual de Charqueadas (PEC), uma briga entre grupos diferentes resultou na morte de três deles. Já, em dezembro, foi assassinado um dos braços direitos de Dilonei Melara - que, no início dos anos 1990, já era importante integrante da Falange, e que viria a ocupar posição central no 'mundo do crime' da cidade ao longo da década seguinte.
Entre 1992, 1993 e 1994, os motins, assassinatos por enforcamento e asfixia e as violências entre apenados - para além das promovidas por funcionários da segurança - seguiram ocorrendo. Ainda, em julho de 1994, seis presos-pacientes armados renderam 27 funcionários do Hospital Penitenciário, demandando a transferência de dois apenados da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (PASC) para o local do motim, incluindo-se, neles, Dilonei Melara. Após o acato das autoridades diante do pedido, também exigiram carros para fuga, que lhes foram concedidos. Trinta horas depois, o episódio terminou com a rendição de Melara (que já se estabilizava como um dos grandes líderes dos presídios rio-grandenses), com cinco pessoas mortas (quatro fugitivos e um policial civil) e com onze feridas, além de ter intensificado a preocupação coletiva diante da situação da segurança no Rio Grande do Sul, especialmente quanto às prisões. Menos de dois meses após o ocorrido, 45 detentos escaparam do Central. A fuga, em que pese ter sido a maior da história do sistema penitenciário gaúcho, não foi novidade: entre o ano de 1994 e o mês de julho de 1995, aconteceram sete grandes episódios de motins e de escapadas no PCPA.
Foi, enfim, no dia 25 de julho de 1995 - após um motim com 21 presos feridos e a insatisfação generalizada da população - que o governador à época, Antônio Britto, anunciou à imprensa que tomaria medidas dramáticas para acabar com os problemas dos estabelecimentos prisionais, especialmente do PCPA, que se encontrava em estado crítico. A estratégia do governador, que assumira em janeiro daquele mesmo ano, era construir novas prisões, transferir os apenados do Casarão para elas e, então, desativá-lo definitivamente. Entretanto, até que essas vagas estivessem disponíveis - o que tinha como previsão de, no máximo, seis meses - a Brigada Militar coordenaria e ordenaria os quatro maiores presídios do Estado. Após o início ainda conturbado de administração do Central pela Brigada Militar, as coisas passaram a 'fazer efeito', e os índices de homicídios, violências físicas, motins e rebeliões começaram a despencar. A fim de alcançar as finalidades previstas, os policiais lançaram mão de mudanças na administração da população carcerária: dentre elas, espacializar os apenados de acordo com suas afinidades, separando 'contras' (inimigos) em galerias diferentes, e aproximando aliados entre si.
De outra banda, a frágil articulação que constituiu a Falange ao final dos anos 80 vinha se estabilizando progressivamente, e na década de 90 ela também passaria por um rearranjo. A nova fase do grupo foi marcada pela crescente centralização de seus integrantes em torno de duas figuras: Dilonei Melara - um dos únicos líderes ainda vivos da composição originária - e Jorginho da Cruz, que era braço direito de outro antigo líder da Falange (um traficante carioca que, antes de ser morto, havia contribuído com a associação entre o tráfico e as quadrilhas de assaltantes porto-alegrenses), e que dele herdou o comando do mercado de drogas do Morro da Cruz. A influência de Melara já havia sido exposta após o motim de 1994 no Central, que se descobriu ter sido arquitetado por ele enquanto estava preso na PASC - a 60 km de distância, e em uma época na qual os telefones celulares não chegavam aos presos. Esta ficou exposta, também, em novembro de 1995, quando 106 dos 206 presos da PEC rebelaram-se como rechaço à proibição, determinada por policiais, de que Melara recebesse visitas na PASC.
O antagonismo sobre o controle da Falange - possibilitado pelo esvaziamento das lideranças 'originais', já falecidas, e pela polarização de apenados entre os apoiadores de Melara e de Jorginho da Cruz que o seguiu - chegou ao fim em 1996, quando o líder do tráfico no Morro da Cruz foi assassinado em uma cela da PEJ. Por conseguinte, a parte da Falange que não 'fechou' (se aliou) com Jorginho despontou no domínio do 'mundo do crime' local: orientados por Melara - que trazia consigo as experiências e o reconhecimento advindos da participação de destaque na Falange -, os membros desse novo grupo passaram a se chamar de 'Manos'. Paralelamente, e procurando distribuir os 'contras' (inimigos) por espaços diferentes, a BM também agregava presos simpáticos aos Manos nas mesmas galerias, possibilitando que eles se articulassem ou se apoiassem nos presídios e, ao mesmo tempo, que se mantivessem vinculados às redes do mercado do tráfico de ilícitos da cidade.
Após a morte de Jorginho da Cruz, um novo grupo começou a se delinear no PCPA, ameaçando desestabilizar o recente monopólio dos Manos. Eram os 'Brasas', que apareceram, em meados de 1997, após acordo proposto pela BM a um apenado com quem 'simpatizava' - Valmir Pires, também conhecido como 'Brasa'. A proposta fora de que Brasa ocupasse um dos pavilhões do PCPA, podendo preenchê-lo com apenados de sua confiança. O lugar deveria permanecer limpo e organizado, e o grupo deveria se comprometer com não fazer motins e rebeliões (que haviam sido tradicionalmente condicionados pela precariedade do Central), e com não organizar tentativas de fuga (frequentes durante os últimos anos de gestão do PCPA pela SUSEPE). Em troca, teriam certa autonomia na gestão do pavilhão que, caso permanecesse em ordem e em paz, não seria duramente monitorado."
Fonte: CIPRIANI, Marcelli. Da "Falange Gaúcha" aos "Bala nos Bala": a emergência das "facções criminais" em Porto Alegre/RS e sua manifestação atual. In: Direito & Democracia, Canoas/RS, v.17, n.01, jan./jun. 2016, pág. 108-110
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