domingo, 31 de maio de 2020

O Curupira - um estudo de 1887 - Parte 04 (Final)


"Em São Paulo (Itu, Campinas etc.) perdendo o nome de Çacy, toma o de Negrinho pastorejo, e para deixar de fazer diabruras não se lhe dá fumo mas sim velas que pelos campos, estradas e quintaes accendem quando d'elle querem obter protecção. É preciso dizer-se, que ahi em vez de ser um porte-malheur é antes milagroso. É crença que as velas que á elle se accendem não se gastam, porque com o seu barrete vermelho as apaga para leval-as para seu uso.

Quando entra pela província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, é com o nome modificado em Negrinho do pastoreio, é então um Gavroche, que ninguém teme como á Kaapora, que tambem as vezes persegue os gauchos no macêgal das descambadas das coxilhas montado nos baguaes sem aperos.

Como paizes creadores, nas vastas campinas exerce o seo poderio e como entre o gado dê pancas, d'ahi veio o nome de 'negrinho do pastoreio', que significa o que vi e nos pastos, e não apascenta ou leva os animaes ao pasto, como em S. Paulo o faz pelas tikúeras.

Como vimos o Maty-taperê é o mesmo Çacy-saperé do Sul.

Maty é uma corruptella de Çacy, saperê o é de taperê, que já uma abreviatura de tapererê, que no Sul fazem sapererê.

Çacy significa a mãe das almas, como bem interpretou Baptista Caetano (hang-h-açã), e que concorda perfeitamente com as crenças amazonicas, onde tudo em todos os reinos da natureza tem uma mãe, (cy).

Taperê, deriva-se de tapeperê, de tape pe, no caminho, kê, ou , sahir, que por euphonia, muda o c em r.

Çacy-taperé, quer dizer a mãe das almas que sahe nos caminhos ou nas estradas.

É o numem viarum, de Marcgrave, o Macacheira o espirito dos caminhos do Padre Simão de Vasconcellos.

A corrente sempre crescente que vae levando de adulteração em adulteração o abanêenga, nhêengatu ou lingua geral, transformando pelo elemento estrangeiro todos os vocabulos a ponto de tornar alguns hoje desconhecidos, occasionou uma corruptella que dá lugar a fazer-se um só mytho de tres distinctos.

A interpretação, que dou por mais de um motivo, me parece ser a verdadeira: Primo, Çacy ou Maty, sómente pelas estradaas, caminhos e ruas, exerce seu poderio em todas as provincias; Secundo, a sua metamorphose, como o tenho verificado, em todas as provincias é sempre n'um passaro o Cuculus cayanus L. ou alma de caboclo, congenere e irmão do C. cornuus, segundo a lenda, o Uirapayé ou Tinkuan do Amazonas ou Alma de gato do Sul; Tertio enfim, os costumes, as formas, as côres do Çacy são as mesmas do Maty.

O viver do Çacy, occulto entre a folhagem secca, quasi da côr de suas pennas, assim como o seu canto, cujas notas nos illudem e que quasi sempre se ouve pela calada da noute, e raras vezes de dia, produzem nas pessoas nervozas, credulas e supersticiosas o mesmo effeito que o da Suinara (Strix furcata) e da Coruja (Strix clamator).

Conheço-o desde criança e o tenho visto pelas provincias porque onde tenho viajado.

Quando criança, com a imaginação cheia de contos, com que no berço me embalaram, quantas vezes não o tomei por encantado, depois de entrar pelos campos ou pelas matas ouvindo o seu cantar sem nunca poder vel-o illudido pelas suas notas, que ora me levavam para direita ora para esquerda, para frente e para traz!

Mas depois quantas vezes tambem ao erguer a sua crista, soltando de bico levantado as notas que me levariam para longe, não o atirei á meus pés, atravessado pelo chumbo da arma, para o escalpello da taxidermia tirar-lhe o encanto!

Não foi somente o canto, que parece dizer mesmo: Çacy-tapererê, que levou o indio a identifical-o com o Çacy anthropomorpho; foi tambem o habito de pousar sobre uma perna, pelo que, dizem, que o passaro é unipede.

Não é só no Brazil que esse zygodafilo é tomado como ave de máo agouro e como encarnação de um espirito máo.

No Paraguay e nas Goyanas é conhecido por feiticeiro e nuncio de infelicidades; em Cayenna tem o nome de Koukon-piayé.

Castelnau diz:

'Cet oiseau, est regardé, par toutes les tribus indiennes que s'étendent de Paraguay á la Guyane, comme étant de mauvais augure, et, dans toutes leurs langues il se trouve designé para les noms divers qu'elles appliment au mauvais esprit.'

Ouvi muitas vezes, no Rio de Janeiro, Minas Geraes e em outras provincias, dizer que á noute, quando o passaro sacode as pennas sahem fachos luminosos e phosphorescentes ficando no meio d'elles o seu vulto negro, como se fôra cercado por um resplandor de fogo.

Essa crença extende-se ao Amazonas e muitos affirmam ter presenciado o facto.

Existirá, com effeito essa phosphorescencia, ou será como o cheiro de enxofre que deixa, quando esconjurado, no dizer das velhas mineiras?

O Maty-taperê, não é, pois, mais do que o Çacy, esse estradeiro que tanto occupa a imaginação do tropeiro e boiadeiro, nos serões do fogo dos ranchos das estradas do sertão, e do tapuyo na rede do teyupar, levando este muitas vezes á loucura (Santarem).

A crença do Çacy ou Kaapora vulgarisou-se tanto como porte-malheur, que o vocabulo introduzio-se na linguagem brazileira, com tanta acceitação, que não ha quem não o tenha empregado nas diversas circumstancias da vida.

Como melhor não o faria, aqui transcrevo o que disse o Sr. Conselheiro Beaurepaire Rohan acerca d'esse mytho e de sua influencia.

A Kaapora aqui refere-se ao Çacy e á sua mãe.

'Caipora, s.m. e fem. (Geral). Nome de um ente phantastico, que, segundo a crendice peculiar a cada região do Brazil, é representado ora como uma mulher unipede que anda aos saltos, ora como uma criança de cabeça enorme, ora como um caboclinho encantado. Esses entes habitam as florestas ermas d'onde sahem á noute a percorrer as estradas. Infeliz d'aquelle que se encontra cara a cara com a Caipora. Nesse dia tudo lhe sahe mal, e outro tanto lhe acontecerá nos dias seguintes, em quanto estiver sob a impressão do terror que lhe causou o fatal encontro. Por extensão dá-se o nome de Caipora á pessoa cuja presença póde influir de um modo nocivo em negocios alheios; e tambem é caipora o individuo malfadao, aquelle que, apezar de sua moralidade, de suas boas intenções e do desejo de melhorar de posição, se vê constantemente contrariado em suas aspirações: Sou muito caipora.'

Da Kaapora veio o Caiporismo, que B. Rohan, assim tambem define:

'Má sorte, máo fado, infelicidade; estado d'aquelle que é constantemente contrariado em suas aspirações: É tal o meu caiporismo que n'aquella emergencia, em que me era tão necessaria a protecção de meus amigo achavam-se todos ausentes.'

O Sr. Emilio Allain, afastou-se de toda a crendice brazileira quando fallando do Kaápora diz: 'est un geant velu monté sur un énorme porc sauvage, et conduisant une troupe d'animaux de la même espèce, qu'il excite de temps en temps par ses cris'. Nunca ninguem lhe deu as proporções de gigante, antes dizem que é um anão.

Pelo que expuz, vê-se que tres mythos differentes, Korupira, Tatacy e Çacy ou Maty, têm sido confundidos sob a denominação de Kaapora, nome generico que quadra a toda essa familia mythologica.

Todos habitam o mato, porém a missão de um, o Korupira, é proteger as matas, as roças, e a caça: a do Çacy fazer malificios pelas estradas, e ainda a da Tatacy guardar os filhos, que em alguns lugares querem que sejam muitos, levando-os ás suas correrias.

A comparação das muitas lendas que tenho ouvido de todas as provincias e estados limitrophes, levou á convencer me que existem os tres mythos confundidos em um só.

Agora, ainda algumas linhas para concluir.

Muito propositalmente não dei até aqui a interpretação da palavra KORUPIRA, porque quiz familiarisar o benevolo leitor com o typo, para que conhecesse o seu aspecto, os seus costumes e o seu genio, nas differentes provincias, paa então abordar a questão etymologica.

Tres traducções se podem dar, porém uma não se harmonisa com a indole dos indios, admittindo-se que a palavra não esteja corrupta.

Kurupyra, kurupira ou korupira, póde ser: o pelle aspera, o sarnento, o tinhoso, o leproso ou pode ser o que vem à roça, ou o que jaz no mato.

Se dirivarmos de kuru ou kurub, sarna, lepra, aspero, e pyr, pelle, será o sarnento, se dirivarmos de ko, roça, u, vir e pira particula que passiva o verbo será, o que vem á roça, entrando o r por euphonia, e se dirivarmos de kaa, mato, u, jazer, e pira, será o que jaz ou vive no matto.

A primeira interpretação vae de encontro á tradicção e ás lendas; por estas poderá ser o pellado, o coxo, o pelludo, o dentuço, o pé torto, porém nunca o affectado de molestias de pelle.

A segunda maneira de traduzir a palavra, penso ser a verdadeira, não só porque vae de accordo com a tradicção, que muitas aventuras conta do mytho pelas roças, como concorda com a maneira de escrever do primeiro mestre da lingua o Venerando Padre Anchieta, que perpetuou o nome com o e não com u. O ter-se mudado aquella vogal para esta é facto commum entre nós, tanto que mais facilmente ouvimos pronunciar curação do que coração.

Posto que a terceira maneira de explicar o sentido da palavra pareça ser a verdadeira, porque mostra o lugar em que reside e exerce o seu poderio o genio indiano, com tudo a mudança de kurupira para karupira repugna a indole da ingua e á nossa phonetica, por não ser commum. Tanto assim é que, os indios e os civilisados ainda conservam a palavra karipyra com que designam outro mytho, sem ter soffrido a mudança do a para o.

Como depois veremos, o karipira é um gavião que vive n'agua e nas arvores, sempre á beira rio, pescando, e d'ahi vem o ser a palavra composta de kaa, arvore, mato, y ou ig, agua e pira."

Fonte: MUSEU BOTANICO DO AMAZONAS. Vellosia, 1887, volume 1Manaus/AM: Typographia do Jornal do Amazonas, 1888, pág. 106-109.

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