sexta-feira, 23 de junho de 2017

Como era uma charqueada?


Trecho extraído de: QUEVEDO, Raul. As estâncias e as charqueadas. Porto Alegre: Livraria do Globo; Dom Pedrito: Pedritense/Cotrijuí, 1986, p. 45-47.

"Como se tem visto ao longo desta narrativa, as primeiras charqueadas funcionaram em campo aberto, sem as mínimas condições de higiene e também sem qualquer preocupação para com o sofrimento dos animais, que eram sacrificados através de meios bárbaros. Comumente, os animais recebiam um golpe de lança (que tinham a forma de meia-lua) no jarrete (garrão), o que os impossibilitava de manter-se de pé. Assim expostos, eram presa fácil ao sangrador e aos esfoladores, que desempenhavam a missão de retirar o couro.

Nos primeiros tempos da 'economia do boi', notadamente nos países do Prata, o couro despertava interesse único. Era comum o sacrifício de milhares de reses para aproveitamento exclusivo do couro. É fácil imaginar a quantidade de animais sacrificados em pleno campo, com os esqueletos expostos às aves carniceiras.

A fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, pelos portugueses, na margem esquerda do rio da Prata, foi a mola propulsora do interesse econômico pelos couros. Os embarques de couros desde o porto de Buenos Aires foram constantes, legal ou ilegalmente. Relata Alfredo Juan Montoya, em seu livro 'Cómo evolucionó la ganadería en la época del virreinato', que em 1674 foram embarcados em três navios - Santa Maria de Lubeque, La Soledad y el Rosario e San José - um total de 40 mil couros. Como se vê, seis anos antes da fundação da Colônia.

Depois o sacrifício do gado aumentou. Segundo o mesmo autor argentino, em 1790 as matanças alcançaram a soma de um milhão de cabeças, conforme documento existente na Biblioteca Nacional, Buenos Aires, de no. 238. Toda matança só para aproveitar o couro.

Ao passar dos anos, o sistema de aproveitamento das reses foi aperfeiçoado. As charqueadas, ou estabelecimentos coureiros - que alguns autores confundem, até hoje, com charqueadas 'pioneiras', foram cedendo lugar aos saladeiros, que vieram até o século XX. Mas os métodos permaneceram mais ou menos os mesmos.

Louis Couty, biólogo francês, contratado pelo governo imperial para lecionar na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, esteve no Rio Grande do Sul no ano de 1878. No relato que fez das charqueadas pode-se notar que os métodos de matança não se diferenciavam muito daqueles usados pelos primitivos habitantes. Por outro lado, também a infra-estrutura dos abatedouros - sua arquitetura e métodos de trabalho, eram iguais aos do século XVIII, e muito provavelmente, inferiores aos que foram instalados pelo espanhol Francisco Medina, em seu estabelecimento 'del Colla', em 1786, às margens do arroio 'del Sauce'.

Vejamos o relato de Louis Couty:

'Os animais eram guardados nas mangueiras, de vésperas (...). Em pequenos grupos de 30 a 60 cabeças, eram repassados para o curro ou brete. Na extremidade do brete o laçador, posto sobre uma plataforma de madeira, laçava pelas guampas do animal. O laço era atado a uma polia manejada por dois homens, ou era passado através de uma roldana e atado a um cavalo com montaria ou a uma parelha de bois.

O animal escolhido para o sacrifício era assim arrastado até o fim do brete, já sobre um pequeno vagão de madeira, com rodas de ferro ao nível do solo: a zorra. O matador (desnucador), às vezes o próprio laçador, abatia a besta atingindo-a com um estilete de ferro na nuca (sic).

Levantando-se horizontalmente a porteira de saída do brete, o animal que havia caído sobre a zorra era transportado para a cancha. A zorra, puxada por alguns trabalhadores, corria sobre os trilhos de ferro.

A cancha era o coração da charqueada. Tratava-se de um piso retangular de cimento alisado, levemente inclinado e contornado por pequenas canaletas. Todo o conjunto era protegido por um galpão aberto nas laterais e coberto de telhas. Os trilhos da zorra, que passavam ao lado da cancha ou a cortavam pelo meio, possibilitavam que os animais, retirados do veículo, caíssem diretamente sob as mãos dos charqueadores (carneadores).

Na cancha, o animal começa a ser 'trabalhado' pela cabeça, perdendo imediatamente o couro. É nesse momento que o carneador poderá sangrá-lo com um golpe certeiro no coração. Toda a operação dura apenas alguns minutos. Passa-se à divisão do animal em vários pedaços. A manta e os membros são levados para um galpão adjacente; a cabeça, as vísceras e o tronco, etc. são retirados rapidamente para fora da cancha, para a entrada da zorra em retorno com outro animal a ser trabalhado.

O início da produção (preparo) começa com o ato de charquear as carnes, ou seja, uniformizá-las em pedaços de igual espessura. A seguir, passa-se à salgação. As carnes são transportadas para mesas especiais onde serão impregnadas de sal e depois levadas para a 'empilha'.

Uma pilha de charque pode conter de cem bois até 1.200, o que demonstra que suas dimensões pode ser as mais variadas. As carnes, superpostas uma sobre as outras, continuavam recebendo borrifadas de sal nas camadas intermediárias. Essas pilhas permaneciam dois dias, em média, para absorver completamente o sal, sendo retiradas após esse prazo para os varais de seca.

Os varais formavam uma visão peculiar às charqueadas. Constituíam-se de estacas cravadas na vertical, com varas na horizontal correndo paralelas e cobrindo longas extensões. Dependendo do tamanho das charqueadas, podiam cobrir milhares de metros quadrados.

As carnes ficavam estendidas sobre os varais por cerca de cinco a seis dias (dependendo do clima), ficando prontas para a comercialização. À noite, para não ser atingida pelo orvalho, era empilhada em pequenos montículos, chamados burras, e recobertas.

No dia seguinte, a face exposta para o sol será a que repousava anteriormente sobre o varal. Passado o estágio de secação, a carne será separada e empilhada na espera do embarque'.

Como se vê o relato de Louis Couty, essa charqueada vista no ano de 1878, quando já se trabalhava charque em termos industriais há cem anos, mostra que os métodos de abate e charqueação eram em muito semelhantes aos praticados nos primitivos saladeiros, como se pode ver nas crônicas de Saint-Hilaire, Nicolau Dreys, Arsène Isabele e outros, que viram quase que o nascimento dessa indústria."

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