Artigo originalmente escrito por mim para a coletânea "Olhares sobre Capão do Leão", publicada em 2014 pela editora Oikós. Na ocasião, tive dois artigos publicados na coletânea, mas este ficou de fora. Mais tarde, passei a uma professora de Estudos Sociais da rede municipal de ensino para uso em aula. Publico, por hora, como texto pedagógico a quem quiser usá-lo. Só solicito a gentileza de citar a fonte.
Meu
olhar sobre Capão do Leão
Desde pequeno ouço dizer que Capão do Leão é sinônimo de
pedra. Morei parte de minha infância em Pelotas e havia próximo a casa em que
morava um senhor gordo aposentado que era amigo de meu pai. Vez ou outra, ele
passava defronte à nossa casa e conversava com meu pai e brincava conosco
usando alguma sorte de pilhéria. Cada vez que nós íamos visitar nossos avós em
Capão do Leão, este senhor gordo dizia que íamos tomar “sopa de pedra”. Quando
voltávamos, ele não perdia tempo e nos perguntava se a tal sopa de pedra estava
boa. Para ele, assim como para tantos outros moradores de cidades de região,
Capão do Leão e suas pedreiras são dois elementos indissociáveis no imaginário.
Não digo que ele estivesse errado, a não ser pelo fato
que jamais tomei a tal sopa de pedra (ou conhecesse alguém que a tivesse
experimentado). Capão do Leão tem muito de sua história e identidade
relacionadas de modo profundo com suas reservas de granito. Muito embora, não
foi a pedra que fundou o Capão do Leão, mas o boi.
No turbulento século XVIII de disputas territoriais entre
portugueses e castelhanos pelas terras da margem oriental do rio Uruguai, os
habitantes da vila de Rio Grande se lançaram além do São Gonçalo[1] e
ocuparam terras que mais tarde seriam os atuais municípios de São Lourenço do
Sul, Turuçu, Arroio do Padre, Canguçu, Morro Redondo, Arroio Grande, o próprio
Capão do Leão, chegando mesmo às serras de Piratini e às praias do rio
Jaguarão. Tudo com o propósito de “marcar território” diante de castelhanos que
reivindicavam direitos mais antigos sobre a terra que os lusos. Depois de 1777,
ano do Tratado de Santo Ildefonso, podemos dizer que toda a região supracitada
já era portuguesa de fato e direito e daí começa a história documental mais abundante
sobre todos esses rincões. Capão do Leão aparece como um ponto inóspito a meio
caminho entre “os campos de Pelotas” e o Forte São Gonçalo (Arroio Grande). Não
existia verdadeiramente Capão do Leão como ponto localidade delimitada, existiam
sim cinco sesmarias[2]
na área do atual município: Sant’Ana, das Pedras, São Thomé, Pavão e do Padre
Doutor. Padre este que chamava-se Pedro Pereira Fernandes de Mesquita e foi tio
do eminente Hipólito José da Costa, fundador do primeiro jornal brasileiro[3] e
patrono da Imprensa Brasileira. Hipólito muito provavelmente recebeu seus
primeiros estudos na estância do Padre Doutor – residência hoje que é a sede da
Estância Santa Tecla.
Bem, mas eu falei de boi. Pois foi o boi e a necessidade
de ocupar a terra que trouxe para esses pagos – sem considerar os índios tapes
e minuanos que havia aqui – os primeiros colonos luso-brasileiros e
sacramentinos.[4]
Rebanhos e rebanhos, ora xucros, ora domesticados, eram a riqueza da região
naquela época, seja para a produção do charque que já se embrionava, seja para
a produção de couro que sempre tinha mercado.
A pecuária de corte no Capão do Leão foi a atividade
econômica mais importante desde a chegada dos primeiros luso-brasileiros no fim
do século XVIII até a década de 1880. Tropas de gado e os tropeiros que a
conduziam ajudaram a criar os primeiros caminhos leonenses, literalmente
abertos na ponta de cascos de bois, cavalos e mulas. A maioria de nossas
estradas rurais e mesmo vias urbanas como a Avenida Narciso Silva e a Avenida Três
de Maio, simplesmente eram no passado “corredores de tropas” que se
direcionavam ou para as charqueadas pelotenses, ou para serem negociadas na
Tablada, ou para engorda nos campos úmidos do Pavão.
Pouco se sabe a respeito do Capão do Leão no século XIX,
a não ser que o tal Capão era um rincão certamente povoado nos arredores de
Pelotas. O fato é que Capão do Leão existia documentalmente. Em 1809, um
requerimento levado ao Rio de Janeiro pelo Padre Felício pede que seja
autorizado o erguimento de uma freguesia[5] no
“lugar denominado Capão do Leão da fazenda de Pelotas”. O pedido foi acatado,
porém a freguesia surgiria onde hoje é o centro de Pelotas. Em 1828, o soldado
alemão Carl Seidler, a serviço do Império na Guerra da Cisplatina, por aqui
passou e pernoitou. Experiência esta não muito agradável no seu olhar
eurocêntrico, pois ela teve que se abrigar numa “venda de mulatos” – lugar onde
muitos aspectos o assombraram[6].
Na Guerra dos Farrapos, o rincão leonense foi disputado
bravamente por legalistas e revolucionários. Consta até o registro de uma
batalha oficial em 1837, vencida pelos farroupilhas. Mais tarde, no ano de
1851, uma inusitada experiência colonizadora foi tentada nos campos que hoje
fazem parte do Jardim América, Embrapa e Loteamento Zona Sul: uma colônia
formada por irlandeses e ingleses[7].
Não teve êxito a colônia, mas muitos descendentes permaneceram na região e no
município. É a partir da década de 1880 que as coisas no obscuro Capão do Leão
das tropas de bois e de ralas informações começam a mudar. Em 1884, a Southern
Brazil Railway Company inaugura a ferrovia Pelotas-Bagé. Capão do Leão torna-se
um ponto de parada e é agraciado com uma estação. Logo, outros acontecimentos
favorecem a transformação da antiga grota
em próspera vila.
Até
aquele momento, pessoa importante aqui era um sujeito chamado Florentino
Antonio dos Santos. Importante por que possuía por essas bandas uma espécie de taverna com hospedaria e potreiro
destinada a atender viajantes e tropeiros
que vinham da Campanha[8].
Florentino e sua taverna eram a referência naquilo que era denominado o Capão
do Leão. Só que Florentino resolveu vender todas as suas propriedades a outro
sujeito: um tal de Domingos Fernandes da Rocha. Rocha queria ganhar dinheiro
com criação e reprodução de cavalos. Sabe-se lá porquê, teve revés nos negócios
e para arcar com as dívidas resolveu vender tudo o que tinha. Só que não passou
a propriedade para outrem. Loteou a área em pequenas propriedades e as vendeu
para renomados cidadãos das elites pelotense e rio-grandina. Essas pequenas
propriedades foram ocupadas por elegantes casas de inspiração europeia e
famílias que desejavam aproveitar o clima silvestre do lugar, principalmente
nas épocas de veraneio. Em pouco tempo, surgiriam as elegantes Villa do Capão do Leão e Villa Theodózio.
A
multiplicação dessas novas moradias fez surgir toda uma rede de comércio e
serviços. A estação ferroviária também foi um motivo para que isso acontecesse.
Pessoas e produtos agrícolas se dirigiam à estação com rumo à Campanha ou à
Pelotas. Onde há circulação, há necessidades de comércio. O primitivo núcleo
urbano leonense crescia e se desenvolvia aceleradamente. Em paralelo, a
fruticultura de clima temperado tomava corpo como importante atividade
econômica. Logo em seguida, a produção de lenha, carvão e as primeiras
explorações de granito completavam o quadro favorável do fim do século XIX. Até
a Princesa Isabel esteve por aqui, almoçando no requintado Hotel Benjamin em 1885. Com a República, o Capão do Leão passava a
ser oficialmente distrito de Pelotas (1893).
Foi
a partir de 1909, porém que a Villa do
Capão do Leão assistiu seu cotidiano transformar-se ainda mais. Com o
propósito de construção dos Molhes da Barra de Rio Grande, a Companhia Francesa[9]
ocupara o antigo Cerro das Pombas[10]
para extrair grandes blocos de pedra. Junto vieram uma tecnologia de extração
mineral inovadora para a época, eletricidade, migrantes e progresso econômico.
Mesmo com a saída da companhia em 1919, Capão do Leão e suas pedras tornaram-se
famosos na região. A atividade mineradora sempre permaneceu como um destaque
leonense, não circunscrito somente a Serra do Granito, mas se estendendo até o
Cerro das Almas, Descanso e Passo das Pedras.
Pedras,
veraneios, frutas e um regular progresso marcaram o Capão do Leão até meados do
século XX. Depois, as antigas famílias que aqui tinham chácaras passaram a ir
embora. A fruticultura foi quebrando graças à maestria de algumas políticas
econômicas regionais e seus criadores. As pedras sempre continuaram, mas foi a
partir de 1950 até meados da década de 1980, com o início do processo do êxodo
rural em toda a metade sul do estado, que se inicia um considerável período de
contínua migração em território leonense. Mais do que saiu, entrou gente em
Capão do Leão. Era afinal o distrito mais próximo a Pelotas.
É
a época do surgimento do Jardim América (década de 1950), das expansões das
áreas urbanas na Embrapa, Teodósio, Cerro do Estado e as primeiras casinhas às
margens da BR-293, embriões das futuras Vila do Toco, Vila Gabriela Gastal e
Parque Fragata. Enquanto alguns desses migrantes são absorvidos pela ainda
importante mas não tão forte agroindústria de conservas e doces, boa parte vem
para trabalhar nos nascentes frigoríficos, nas grandes obras das rodovias, na
Universidade Federal e nas plantações de arroz.
Em
1963, Capão do Leão já com algum destaque socioeconômico regional tentou sua
emancipação, sonho logo posto abaixo pelo prefeito de Pelotas. Em 1981-1982, a
história se repetiria, só que agora com a conquista da autonomia política
finalmente concretizada. Eu, particularmente, penso que Capão do Leão, mesmo
com todos os seus problemas, ganhou com a emancipação. Um fato se impõe: pela
arrecadação que o antigo quarto distrito de Pelotas produzia, o Capão do Leão
era muito maltratado nas decisões políticas. Serviços básicos demoravam um
“eito” para chegarem, a prioridade das ações públicas se direcionava mais para
a zona norte de Pelotas e seus distritos “alemães”. Mesmo tendo permanente um
representante na Câmara de Vereadores – Elberto Madruga – a situação não
vislumbrava muito uma melhoria.
Com
a emancipação, ao menos Capão do Leão passou a ser responsável por aquilo que
poderia ter feito de certo ou errado. Na década de 1980, a realidade já era bem
diferente de décadas anteriores. Foi o boom
da imigração! O município estava sendo construído dentro de um contexto
regional turbulento[11].
A década seguinte não fugiu à tona.
No
alvorecer do século XXI, Capão do Leão ainda tem uma identificação muito grande
com suas pedreiras. Embora, ele não seja somente pedra. O Jardim América possui
uma realidade diferente e seu crescimento populacional nos permite dizer que é
um núcleo urbano que possui identidade própria. Outras zonas do município
também. O arroz e a soja dominam nossa agricultura. A pecuária leiteira também
tem sua importância, não desfazendo de nossa agricultura familiar igualmente.
Bem sigo falando de economia, vou mudar o disco.
O
povo leonense possui muitas matizes em sua origem. Recebe o sangue dos migrantes
de nossa região, de vários rincões e municípios do estado. Mesclam-se
fortemente os elementos português, ameríndio e negro africano. Dos europeus,
ainda conta-se o alemão, o italiano, o basco e o espanhol. O uruguaio também se
achegou por estes pagos no decorrer da história.
Seguramente,
vivemos em mais de três décadas de emancipação política a primeira e genuína
geração de leonenses – no sentido mais amplo da palavra. Não somente pessoas
que nasceram aqui, mas pessoas que viveram e vivem a realidade de Capão do Leão
desde que ele tornou-se independente. Houve muitas conquistas, novos desafios
surgiram. É uma terra com grande potencial humano, natural e econômico. O
futuro se coloca como uma indagação persistente, pois já se percebe que aquilo
que pertencia ao chamado “ciclo emancipacionista” como ideias e personagens já
ocupou seu lugar na história e teve seu legado. A nova geração que vive Capão
do Leão tem o desafio de dar continuidade à história deste chão. Mais do que um
chamamento, isto é também um imperativo. Afinal, em 2060 seremos o terceiro
município mais populoso[12]
de toda a zona sul!
[1]
Canal São Gonçalo, ligação fluvial entre a Laguna dos Patos e a Lagoa Mirim.
[2]
Espécie de unidade agrária correspondente a 6.600 metros de distância. Na época
colonial, tornou-se sinônimo de área rural concedida a alguém por serviços
prestados à Coroa Portuguesa. Na maioria dos casos, as sesmarias ultrapassam as
medidas oficiais. O brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, por exemplo, tinha uma
“sesmaria” que contava mais de seis sesmarias de área.
[3] O
Correio Braziliense, publicado em Londres, em 1808.
[4]
Procedentes da antiga Colônia do Sacramento, atual Uruguay, último entreposto
português na América do Sul.
[5] No
sentido do texto, uma paróquia com capela matriz.
[6]
Seidler descreve sua passagem em Capão do Leão eivada de preconceito, pois fora
recebido por mestiços e negros. De certa maneira, ele se choca com os costumes
rústicos das pessoas que encontrou. Diferente de quando chega a Pelotas, onde é
hospedado por pessoas de costumes bem mais próximos à dita educação europeia.
[7]
Vieram patrocinados pela Associação Auxiliadora da Colonização de Pelotas. Os
irlandeses eram provenientes da baronia de Forth, Condado de Wexford.
[8]
As informações em itálico são do cronista pelotense Alberto Coelho da Cunha que
escreveu a obra manuscrita “História dos Distritos de Pelotas” na década de
1920.
[9]
Compagnie Française du Port du Rio Grande do Sul.
[10]
Nome antigo do Cerro do Estado.
[11]
Foi o período da crise derradeira da indústria conserveira na região.
[12]
Segundo um estudo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UFPel, de 2005.
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