quarta-feira, 23 de outubro de 2024

O Folclore da Cachaça no Rio Grande do Sul

 



Por Carlos Galvão Krebs

A bebida popular no Brasil, de Norte a Sul, é a cachaça. O Rio Grande do Sul não escapa a isso. As três armas que o gaúcho usa, paradoxalmente, contra o calor e contra o frio, são o pala, o chimarrão e... a cachaça.

Precisamente por ser a bebida popular por excelência é que a cachaça vem despertando a atenção dos folcloristas nos últimos tempos. Desde o sociólogo Gilberto Freyre, desde o respeitabilíssimo Luiz da Câmara Cascudo até José Calazans que publicou "CACHAÇA BRANCA" na série oficial das edições do Museu do Estado da Bahia.

Seguindo a trilha, vamos alinhavar aqui o pouco que sabemos a respeito do folclore da cachaça no Rio Grande do Sul.

A SINONÍMIA

Como em tôda a parte do país, também aqui a voz mais comum para designar a aguardente é CACHAÇA. Mas se fala muito em CANINHA, CANA, e CANHA, por influência de CAÑA, forma castelhana. Às vêzes se ouve dizer BRANQUINHA. Um dos sinônimos mais curiosos que temos ouvido é RAMA. "Meter rama" é beber muito, especialmente caninha. Depois da descoberta de Fleming, como na Bahia, também se diz no Rio Grande: "Bota aí uma penicilina".

A MAIS FAMOSA

Sem dúvida alguma pelo que temos ouvido no Estado e fora dele referida por gaúchos saudosos do pago, a mais famosa cachaça do Rio Grande do Sul é a caninha azulada, de Santo Antônio da Patrulha. Sob a luz natural apresenta uma bela coloração azulada, conseguida à base de casca de bergamota segundo uns, ou de carvão vegetal segundo outros. Infelizmente, como Santo Antônio fica na rota das praias atlânticas, sua cachaça vem sendo por demais solicitada. Disto resulta uma queda de qualidade. Na própria fonte de produção nos chegamos a adquirir a AZULADA ainda morna, recém saída do alambique.

AS MARCAS DE CACHAÇA

Para ilustração desta pesquisa apresentamos ao lado uma pequena coleção de cêrca de cinqüenta rótulos. Todos de caninhas vendidas e bebidas dentro do Estado. Muitas delas produzidas aqui mesmo. Outras tantas, importadas de outras regiões do país. Com base neste material e através dos títulos, os especialistas podem realizar um belo estudo psicológico.

A coleta de rótulos para coleção exige uma técnica muito simples. Muitos rótulos são impressos em papel de pouco pêso, isto é papel muito fino. E frequentemente os produtores usam goma muito forte. Daí surgir dificuldades para a retirada dos rótulos, que se rasgam à menor tentativa. Entretanto basta deitar a garrafa horizontalmente, cobrindo o rótulo com um pano leve, sôbre o qual se derrama vagarosamente o conteúdo de uma chaleira de água fervendo. Ao final o rótulo pode ser destacado com relativa facilidade e com prejuízo mínimo para a sua integridade.

O RITUAL DOS BEBEDORES

Os bebedores da campanha do Rio Grande conservam uma bela fórmula para beber tradicionalmente sua cachaça. Velha fórmula e sempre nova, porque antiga e atual. Chega um gaúcho a uma venda qualquer. Cumprimenta todos e ordena ao bodegueiro que "bote" uma dose de cana. Sempre há pelos cantos alguns guáscas, bebericando e conversando. Servida a cana o recém chegado apanha o copo e o passa sem beber - ao que lhe está mais próximo. Êste recusa:

- "Não, senhor, está em boa mão".

- "Mas para melhor vai!"

Só então o convidado apanha o copo e bebe um trago. E passa a caninha ao seguinte da roda. Ao terminar a volta, sobra ao pagante um gole exatamente igual ao que todos beberam. Aquêle que paga - e isto é essencial à gentileza gaúcha - é sempre o último a beber.

Acreditamos que haverá muitas outras fórmulas para registrar. Entretanto não nos parece existirem no Rio Grande do Sul aquelas loas, lodaças e glosas de que fala Calazares na Bahia, seja para pedir um gole, seja para agradecer uma bicada.

ANEDOTÁRIO

Embora relutando, um gaúcho certo dia deu com os costados num consultório médico. Depois do exame o doutor lhe proibiu terminantemente a cachaça. Em casa o pobre homem deu para sentir uma dor de cabeça tremenda. Não teve dúvidas: foi à venda e mandou botar a dose que então se chamava "quatrocentão de cana". De uma só vez metia no copo três dedos: o polegar, o indicador e o médio da mão direita. Em seguida enquanto dois dedos esfregavam a cachaça na testa para passar a dor, o guásca chupava o polegar avidamente...

Também a outro pêlo duro foi proibida a cachaça. Ao voltar ao doutor êste não viu nenhuma melhora com o tratamento. Pergunta severamente:

- "O senhor não bebeu cachaça, mesmo?"

- "Não, senhor! Quando eu tava com muita gana, botava farinha de mandioca num prato, despejava cachaça em cima, mexia bem e... comia o pirão!"

A CACHAÇA NA POESIA POPULAR

O estudante Mário Vieira recolheu em 1850, na Estância do Umbú, município de Cruz Alta, uma deliciosa "décima" sôbre a cachaça. Ouviu-a do negro Adolfo, posteiro da fazenda e cantador nas horas vagas. Adolfo morreu no verão de 1953 para 1954. Não fôsse a coleta de Mário Vieira e talvez tivéssemos perdido para sempre estes saborosos versos:

"Saudade, tenho saudade

Da terra onde nasci

Saudade duma aguardente

Da cachaça que eu bebi"


"A cachaça é minha prima

O vinho meu primo, irmão

A cachaça eu bebo em copo

O vinho em garrafão"


"Eu não gosto da cachaça

E o vinho não posso ver

Quando eu pego na garrafa

Deixo os outros sem beber"


"Uma moça me pediu

Que eu deixasse de beber

Eu de beber eu não deixo

De um porre eu quero morrer"


"No fundo de um alambique

Vou fazer minha sepultura

Que mesmo depois de morto

Quero viver na fartura"


"Da garrafa eu faço a vela

Da pipa faço caixão

Do funil faço a mortalha

Me botem um copo na mão"


"Quando eu morrer ninguém chora

Quem chora são as garrafa

Eu quero que o povo diga

Morreu o pai da cachaça"

O PEJORATIVO DA CACHAÇA

Bebida barata e popular, a cachaça estigmatiza tôda uma classe social. "Negro cachaceiro!" é expressão comum no Rio Grande do Sul. Na frase feita, o NEGRO não funciona como epiderma, como raça, mas sim como CLASSE, a mais baixa, a ínfima classe social. Pelo menos essa é a intenção consciente ou inconsciente. Recordamos um fato que torna isto bem flagrante. O advogado Sylvio Faria Correia (agora falecido) foi prêso junto com Borges de Medeiros quando peleava nas coxilhas a favor dos constitucionalista de São Paulo, em 1932. Passada a revolução, publicou (no estrangeiro, é claro) um livro de memórias - "Serro Alegre". Narra que, em momentos de frio intenso, êle e seus companheiros se aqueciam com tragos de "rhum". O livro circulou clandestinamente em Pôrto Alegre. Logo um jornal governista apanhou o pião na unha e lançou um artigo ridicularizando o movimento constitucionalista, os revolucionários e o autor do livro. Título do artigo: "RHUM NÃO: CACHAÇA!" A darmos crédito ao artigo, o episódio comprova, pelo direito e pelo avêsso, aquilo que queremos demonstrar. De um lado, o revolucionário gaúcho transforma a rude e singela em "rhum" sofisticado inteiramente estranho à campanha do Rio Grande do Sul. Isto, para furtar-se ao estigma pejorativo da caninha. Do outro lado o jornal, a acentuar precisamente tal estigma. O título "Rhum não: cachaça!" nada mais queria dizer senão êste insulto, visando os revolucionários - "Negros cachaceiros!"

AS MISTURAS DE CACHAÇA

Com vistas à medicina lembramos logo a cachaça com arnica, vegetal abundante no Estado. Arnica (subentendido: em infusão na cachaça) sempre foi uma verdadeira panacéia. Servia para tudo, desde a simples luxação até o ferimento grave.

Mas foi para a bebida que a cana teve e tem maior utilidade. Não houve uma senhora, mulher de estancieiro que não tivesse feito seus licôres à base de caninha. Dentre êles sobressai o universal licor de butiá. O butiázeiro é uma palmeira típica do Sul do país. Seus "coquinhos" com cêrca de uma polegada de diâmetro são gordos e saborosos. Cachaça, butiás, açúcar, mais algum tempinho para descançar, sempre deram como resultado êsse licor tradicional do Rio Grande do Sul. Hoje com o progresso, muitos estancieiras adquirem nas farmácias "da cidade" o álcool puro a tantos gráus para fazer seus licores.

Em Pôrto Alegre, mesmo o gaúcho citadino encontra em qualquer bar (e não é fôrça de expressão, é a pura verdade) as mais variadas misturas de caninha.

Por exemplo:

Caninha com "bagos de zimbro", ou "bagas de zimbra", também chamadas "Wacholder" em alemão. Desta vez os luso-brasileiros freqüentemente fazem uma corruptela dizendo "Bacholda" com o CH alemão. As bagas de zimbro são sementes pequenas, redondinhas, de um verde escuro, que se deitam em quantidade dentro de um recipiente cheio de cachaça. Dão um gôsto especial à caninha. Sua finalidade é estomacal, segundo se afirma. Tal mistura há tempo vem sendo explorada industrialmente por uma emprêsa da Capital do Estado.

Caninha com mastruço, erva do gênero das crucíferas medicinais.

Caninha com losna, outro vegetal com qualidade estomacais, conforme a crença popular.

Caninha com cabriúva (casca) que deve ser cortadinha para poder entrar pelo gargalo da garrafa. A cabriúva, que é árvore transmite à cachaça um perfume delicado e especial, como se lhe tivessem adicionado gôtas de perfume nobre.

E ficamos aqui.

Sabemos, melhor do que ninguém, que isto não esgota o tema. Ao contrário constitui apenas uma lembrete aos folcloristas e tradicionalistas gaúchos que poderão registrar muito mais coisa do que nós.

Fonte: A HORA (Porto Alegre/RS), 21 de Fevereiro de 1959, sem indicação de página


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