sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A mentalidade territorial gaúcha


Fonte: VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005, p. 349-350

"Pela fatalidade da sua posição geográfica, as populações pastorais, que constituem o grupo do extremo-sul, estão expostas à eventualidade das invasões estrangeiras.

Elas têm por base geográfica um largo trecho de terra inteiramente desabrigado. Contra as incursões dos forasteiros, não há ali o menor empeço de fronteiras isoladoras. Nem grandes florestas. Nem vastos pantanais intransponíveis. Nem cadeias ingalgáveis de montanhas circundantes. Apenas uma superfície chã, livre, contínua, cortada de rios vadeáveis. Nada mais.

Penetram as hordas platinas o pampa pelas fronteiras interiores; vem do âmago dos campos para as zonas maninhas da costa. De maneira que a sociedade gaúcha é ferida em cheio na sua massa; impelida contra os litorais, é obrigada a uma luta desesperada e heroica em defesa do seu habitat.

Nessa batalha secular pela existência e pela integridade territorial, os gaúchos não agem, porém, nunca sós; encontram sempre o auxílio pronto, constante, infalível, eficaz dos poderes públicos, quer gerais, quer locais. Sem esse auxílio, teriam sido aniquilados pela anarquia platina. É o governo quem os ampara, os resguarda, os blinda, com uma armadura de baionetas, poderosa e invencível. Sobre essa muralha de ferro, quebram-se em vão os vagalhões da desordem argentina, da caudilhagem oriental, da belicosidade paraguaia - o turbilhão platino, na sua brutalidade devastadora.

É sob a pressão dessas circunstâncias excepcionais que se formam e constituem as populações do extremo-sul. Os seus clãs pastorais sentem, sob a ameaça comum, a necessidade da própria solidariedade: e unem-se. O Estado, o governo, a autoridade pública, com a sua poderosa organização marcial, surge, por sua vez, no meio deles como uma dessas necessidades iniludíveis, de cuja satisfação depende a vida ou a morte da coletividade. 

Entre a autoridade e o povo se consolida então uma união íntima e profunda, acabando uma e outro por se fundirem numa só massa organizada, viva e consciente, com o senso do perigo comum, do interesse comum, do destino comum.

Daí, na consciência dos gaúchos, ser a noção dos interesses comuns e da solidariedade social um conceito vivaz, enérgico; carregando na sua composição grande número de elementos sensoriais e efetivos. Igualmente, a noção do valor do poder público, da autoridade pública, do governo político. Este deixa de parecer um puro órgão de opressão e extorsão fiscal, para ser um órgão necessário, vital, imprescindível à integridade e à vida da coletividade. O povo o aceita, o povo o obedece, o povo o reclama; por toda a parte sente a sua ação, o seu valor, a sua previdência: vigiando, prevenindo, fortificando, resguardando, defendendo.

Esse grande fator de solidariedade política, que produz o sincretismo dos clãs pastorais dos pampas e fixa na mentalidade gaúcha a noção do valor e da utilidade do poder público, não tem influência sensível na história das populações do centro-sul."


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