quinta-feira, 5 de maio de 2022

Festas de São João no Rio de Janeiro no século XIX



 Nota nossa: o autor descreve antigas tradições juninas verificadas no Rio de Janeiro em décadas anteriores. Suprimimos a primeira parte, por ser meramente uma introdução rebuscada ao assunto, sem trazer informações concretas, que se colocam a seguir.

A VESPERA DE S. JOÃO

(...)

Para as festas de S. João, eram multiplos os costumados introitos. Recebiam-se convites de grandes senhores, dos fazendeiros riquissimos, da burguezia abastada e do proletario remediado. No Rio de Janeiro, logares havia em que se festejava o Baptista do modo mais estrondoso e fidalgo. Em Inhaúma, em Paquetá, em Campo Grande, na ilha do Governador, etc., o mastro plantado, com a boneca, enfeitado de espigas de milho, laranjas e mais fructas, indicava o festejo no sitio, as proximidades do dia.

Nos arrabaldes, as chacaras e palacetes, com o mesmo signal, chamavam a attenção dos visinhos, que propalavam indiscretos os nomes dos donos, commentando livremente a lista, ás vezes imaginaria, dos convidados.

Antecipadamente, viam-se nas ruas pretos de ganho com cestos carregados de foguetes e fogos de todo o genero, de cannas e batatas doces, de carás e milhos verdes, de gallinhas, ovos e perús; de tudo, emfim que dizia respeito á folia da noite e aos lautos jantares e ceias que então se davam.

Os fazendeiros despendiam largas sommas, vestiam de novo a escravatura, matavam rezes em obsequio aos convidados da côrte. Em casa da baroneza de Sorocaba, do barão de Merity, do Angelo do Amaral, e do marquez de Abrantes, a opulencia começava a espalhar os seus dons, preludiando os regosijos da noite desejada; no palacio de S. Christovão, as princezas recommendavam ás suas companheiras de infancia, que comparecessem bem cedo; em varios pontos da cidade, os pais de familia dispunham da lenha para as fogueiras, collocavam sobre a mesa os livros de sortes, encordoavam-se os violões para os descantes.

As rodinhas, as pistolas, os foguetes, busca-pés, chuveiros, cartas de bichas, gyra-sóes, traques de sete estouros, bombas, e uma diversidade enfadonha de fogos, alastravam as mesas, entupiam as mangas de vidro, atopetavam as gavetas.

De par com tudo isso, as donas de casa atropellavam as escravas, arrumando as provisões, ralando o milho verde e o coco para a cangica, fazendo os saborosissimos bolos de S. João.

Nas ante-vesperas, na intimidade do lar, as moças reuniam-se á luz do candieiro, e os meninos, descendo aos pulos do sofá da sala, acercavam-se da avó, que, tremendo com os labios, rolando nos dedos as contas do rosario, narrava sentada n'uma esteira, a lenda do Baptista e das fogueiras.

E as moças, accomodando as crianças, e as crianças, bugalhando os olhos, fitavam-na, uma vez disposta, assim começava:

- Vou contar-vos, meus netinhos, uma historia do principio do mundo. Um dia, Nossa Senhora, que trazia a Nosso Senhor Jesus Christo, foi visitar a sua prima Santa Isabel, que tambem trazia em seu bemdito seio a S. João Baptista. Apenas as duas sagradas primas se avistaram, o divino Baptista, que não tardava a nascer, se ajoelhara em adoração a Jesus. Santa Isabel, que isto sentira, não tardou em communicar o milagre á Virgem, que, exultando, perguntou-lhe: "- Que signal me dareis, quando nascer vosso filho?" "- Mandarei plantar n'esta montanha um mastro com uma boneca e accender em torno de uma grande fogueira" respondeu-lhe.

"E de feito; na vespera de S. João, a Mãi de Deus, vendo de sua morada uma fumacinha, labaredas e o mastro, partiu, indo visitar Santa Isabel."

"Desde então, concluiu a boa velha, é que se festeja o santo com mastros e fogueiras."

- Oh!... que historia tão bonita!... interrompeu um dos ouvintes.

- Já agora, escutem outra, meus filhinhos: tem o mesmo motivo e é da mesma data; é do tempo em que nem eu nem vocês sonhavamos de nascer, e que a terra estava toda coberta d'agua.

- Conte, vovó, conte! Tão bonito!!...

E a velhinha, alisando os cachos de cabellos brancos, deixando cahir os braços sobre as pernas cruzadas, sorveu um pequeno ronco, abriu a bocca desdentada, proseguindo:

- É o resto da historia, Mezes depois, quando Santa Isabel cantava ninando a seu bento filho, este lhe perguntou: "- Minha mãi, quando é o meu dia? - Dorme, meu filhinho, dorme; logo que elle fôr, eu te direi". E S. João dormiu. Acordando, porém, na noite de S. Pedro, e ouvindo foguetes e vendo fogueiras accesas, insistiu: - "Minha mãi, quando é o meu dia?..."

- O teu dia já passou, acudiu-lhe ella.

- Ora, minha mãi, por que não me disse, que eu queria ir brincar na terra?

- Sim, por que não disse? retorquiram pezarosos os meninos.

- Santa Isabel teve razão, meus netinhos; se S. João descesse do céu, o mundo se arrasaria em fogo.

Essas tradicionaes historias eram correntes em toda a parte, dando-lhes inteiro credito gerações que se foram e geração que ainda existem.

Diariamente, encontravam-se aqui e alli grupos de famillias constituindo pequenas tribus. Adiante iam as crianças, logo após as moças e os rapazes, depois os pais e os velhos, emigrando para fóra da cidade ou para fóra da côrte.

A estes acompanhavam, em gradação opposta, os pretos e pretas idosos, carregando latas de folha com roupa de uso; as mucamas, leves cestos e embrulhos com objectos pertencentes ás sinhás-moças; e, na retaguarda, iam os molequinhos com o chapéu de sol e a bengala do sinhô-velho, um cachorrinho de estimação, um sagui, uma bugiganga qualquer.

Os que vinham pelo cáes da Gloria descortinavam o mar sulcado de botes e canôas entrados n'agua ao peso dos passageiros, sentados e de pé, que os enchiam, acenando com lenços e em alegres vozerias.

Pendurado á prôa dos barcos, um escravo ou um rapagão riscava um phosphoro, mordia o papel de um foguete, e, o aprumando ao longo do corpo, atacava-o, estourando no alto, ás repercussões do écho.

Ao amanhecer de hoje, tudo se achava ordenado e previsto: a população distribuida, as bandeijas de fogoso sobre os aparadores e cama do quarto de dormir; as cannas, os côcos, os carás e os milhos empilhados na cozinha; a fogueira abraçava o mastro; e Os dados da fortuna, A roda do destino, O cigano, e outros livros de sortes, fornecidos pela livraria Garnier, ficavam á escolha dos consultantes de oraculos.

Apenas escurecia, as machinas boiavam no ether humido e transparente; as cabeças de alcatrão fumavam rubras nas ruas; e os busca-pés largavam-se atraz dos transeuntes, rabeando, rolando, serpeando, em fulgidos estouros.

E uma preta, perseguida, corria d'aqui; e um individuo, livrando-se, pulando, encostando-se a um muro, avultava acolá; e os rapazes, no ardor do brinquedo, riam-se a bom rir, do expediente das victimas e das descomposturas consecutivas.

Ás badaladas do aragão, o ar estava todo marchetado das zonas luminosas das fogueiras que ardiam nos quintaes e chacaras; e dos sobrados, os combates a pistolas, ao mesmo tempo que formavam das janellas ás calçadas cachoeiras de fogo, adquiriam maravilhoso aspecto, á proporção dos tiros de côres, que, pontuando irisados as paredes, cahiam em gemmas derretidas no chão dos lagedos.

Ao longo dos caminhos, com estranho e equivoco ruido, escutavam-se descargas de cartas de bichas, que estouravam em potes de barro e barricas cobertas, collocadas de distancia em distancia pelos habitantes do quarteirão.

Fazendo singular contraste com esta scena de apotheose theatral, á rotula de páu da casa terrea, uma mulher embicada segurava na mão de uma criança, sacudindo, na extremidade da flecha, indefluxada rodinha.

Na totalidade das habitações e nas fazendas, o throno de S. João deslumbrava de luzes e viçosas flores, ornado de sanefas carissimas, e elevando-se de uma toalha de côrdas neblinas, pregada aos cantos do altar com laços de fita e prateados alfinetes.

Na roça, as fogueiras tinham no centro, ora o mastro, ora uma arvore, que estalava minada pelas chammas, arriando-se com fragor.

Os escravos, de calça de algodão cortada ao joelho, de camisa branca do mesmo panno e aberta no peito, batucavam com as escravas á roda do fogo, assando carás e batatas, tirando os do norte os seus cocos, dansa e canto popular d'aquelles sertões:

"Lá vai, amor, lá se vai!

O amor, lá se vai!

Pelas paredes a riba

Ninguem vai!"

"Onde vai, lavadeira?

- Vou lavar.

E eu vou aprender

A nadar."

"Este João é um?

- Será ou não.

Tatú no matto

Com seu gibão,

Um pé calçado

O outro no chão."

" 'Stava na praia escrevendo,

Quando o vapor atirou,

Foi os olhos mais bonitos

Que as ondas do mar levou."

"Lá vai, amor, lá se vai!

O amor lá se vai;

Pelas paredes a riba

Ninguem vai!"

Á porteira das fazendas, e esclarecendo a entrada, as cabeças de alcatrão queimavam toda a noite. Os fazendeiros, de rodaque de brim e de chapéu do Chile, folgavam no terreiro, obsequiando os hospedes, que atacavam fogos á discrição, que faziam guerra a busca-pés, facheados na mão calçada de luva de couro, e cuja bomba era lançada aos arraiaes contrarios, rebentando com estampido.

A fazendeira, attenciosa e distincta, mandava servir, aos convidados, pires de cangica, manjar, pedaços de canna assada e bolos de S. João.

As moças da côrte, na elegante varanda, suspendiam acima da fronte pistolas de tiros de côres, craveiros de chuva de ouro, que illuminavam, com os seus projectis e faiscas, os tectos longiquos das senzalas vasias. Outras, grupadas á mesa de jantar, lançavam dados, liam as quadrinhas da sorte, prorompiam em gargalhadas, ás predições do destino.

"Um velho torto e pançudo,

De nariz de palmo e meio,

Ha de ser o teu consorte,

Mui breve, segundo creio..."

É ocioso dizer, que n'essas occasiões confraternisavam-se os coroneis e tenentes-coroneis do logar, todas as forças dos partidos, desde o mais influente chefe eleitoral da Formiga até o mestre de escola de Vassouras, ou de não importa que villa.

E as fogueiras do terreiro vomitavam grossas labaredas; as machinas sumiam-se na noite, ou desfaziam-se em gottas de fogo; e as gyrandolas, as bombas, as roqueiras estrugiam aos - Viva S. João! - cujos écos iam morrer na floresta.

Os negros despejavam no brazeiro carros de milho e carás, verdes cannas e tenras espigas; e os moços e moleques, pulando as fogueiras, appareciam no alto d'aquella atmosphera ignea, abrindo a bocca e gritando:

- Acorda, João!...

ao que muitos dos festejantes respondiam cantando:

"S. João 'stá dormindo,

Não acorda, não;

Dê-lhe cravos e rosas

E mangericão."

Na noite de hoje e na de amanhã, dentro e fóra das grandes cidades, um pouco antes de meia noite, resvalava, aos clarões das fogueiras, o carro mysterioso de superstições nacionaes.

Fosse debaixo dos tectos dourados, ou da telha-vã da pobreza, essas crenças abrigavam-se sem constrangimento, exercendo poderosa influencia sobre as mulheres e pessoas simples.

Assim, ao estampido dos fogos, ao brilho decrescente das enormes lavas, o movimento supersticioso iniciava suas praticas, cujos dogmas constituiam no seguinte, sempre executado ao toque da meia noite:

Em louvor de S. João, plantava-se um alho; se amanhecia grelado, obtinha-se o que se desejava.

Deixava-se ao sereno uma bacia d'agua, e ia-se, antes do nascer do sol, mirar o rosto; se o individuo não via a sua sombra, era signal que não chegaria a outro S. João.

Passava-se, em cruz, um copo cheio d'agua por sobre a fogueira, e quebrava-se dentro do liquido um ovo com a clara e gemma; de manhã, se appareciam os lineamentos de um navio, significava viagem; se a fórma de uma igreja, casamento; se um caixão, enterro.

De um outro copo, que tambem passava-se na fogueira, em louvor de S. João, tomavam as moças solteiras um bochecho, e ficavam atraz da porta da rua. O primeiro nome de homem que ouvissem pronunciar, seria o d'aquelle que lhes estava reservado para marido.

Antes da meia-noite, devia-se ir ao quintal ou terreiro onde houvesse plantado um pé de arruda com flôres. Estendia-se no chão uma toalha e accendia-se nas pontas duas velas de cêra.

O fim d'este sortilegio era aparar as sementes que cahiriam á meia-noite, sementes estas que ninguem conseguia obter, por isso que o Diabo era quem n'aquelle momento as recolhia, assombrando o individuo que ousasse disputal-as.

Um dos prejuizos mais arraigados entre o povo era que as brazas da fogueira ficavam bentas; e muitas pessoas as guardavam ou enviavam aos parentes ausentes, acreditando que quem as possuisse, viveria mais um anno.

Aos primeiros raios de sol - porque depois as aguas perderiam de sua virtude - tomava-se o banho de S. João, que gosava de propriedades preservativas e miraculosas.

Estes brinquedos prolongavam-se, ás vezes, até S. Pedro, com o mesmo apparato e lentejoulado de innocentes abusões.

Por hoje fechamos a janella ás tradições e nos despedimos saudosos da gente antiga, não nos importanto de ser acoimado por nativismo, sentimento sublime que herdei de meu pai, e que bebi no seio materno, que são as taças do bem e as fontes da vida.

MELLO MORAES FILHO.

Fonte: GAZETA DE NOTICIAS (Rio de Janeiro/RJ), 24 de Junho de 1887, pág. 01, col. 07-08; pág. 02, col. 01

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