quinta-feira, 15 de abril de 2021

O Saci - um estudo de 1882 - Parte 01

 



"Todos os povos perpetuão na memoria de seus filhos tradições mais ou menos graciosas ou terriveis de entes sobrenaturaes, que exercem uma acção fatal ou benigna no destino dos individuos da especie humana, e que realisão todos os seus artificios neste sentido, sem a mais leve sombra de responsabilidade legal, como é de suppôr, attendendo-se á sua natureza intangivel.

Variado e curioso seria o estudo de quem quizesse acompanhar até sua origem a história dessas primitivas lendas populares, que tão grande influencia exercêrão já sobre a indole dos povos, e que ainda em nossos dias são transmittidas, em muitos paizes, de pais a filhos, como uma singular e preciosa herança.

O talentoso humorista allemão, o profundo e espirituoso Henrique Heine consagra, na sua obra A Allemanha, um capitulo cheio de interesse e de vida ás tradições populares da Germania, e dá o maior apreço a este assumpto, que já foi tratado em tempos mais remotos por alguns sabios, taes como os irmãos Grimm, Paracelsos e outros, cujos nomes são respeitados na republica das lettras.

O poeta inglez Spenser, na Rainha das Fadas, e o immortal Shakespeare, nos Sonhos das noites de estio, revestirão com as galas de suas imaginações estas creações poeticas com tanta felicidade, que Heine chega a dizer que, se os elfos não fossem de sua natureza immortaes, fical-o-ião sendo na maravilhosa concepção do grande dramaturgo, encarado em nossos dias como o primeiro chefe da escola romantica.

Os espiritos, segundo Paracelso, se bem que sejão creaturas de Deus, tomão as fórmas que mais lhe apraz, aérea, ígnea, terrea e aquosa, conforme a designação dos quatro elementos então conhecidos, e assim apparecem aos mortaes, que soffrem sem remissão os caprichos quasi sempre maleficos destas creaturinhas diabolicas.

Quando os espiritos máos revestem a fórma masculina ou a feminina, são conhecidos com a denominação de incubos e succubos.

Estas tradições dividem-se em dois grandes ramos, segundo as suas indoles elementares, conhecidos por orientaes e occidentaes.

Apezar de todos os esforços de alguns sabios pacientes, ainda se não conseguiu classificar a origem tradicional desta grande familia conhecida pela variada designação de nynphas, ondinas, sílvanos, salamandras, elfos, lamias, feiticeiros, bruchas, duendes, lubishomens, e tantas outras creações bellas ou monstruosas, que desde a meninice somos obrigados a reconhecer pela autoridade respeitavel de nossas velhas amas, que nos embalárão narrando, nos longos serões do inverno, essas historias de fadas encantadas, que tão poderoso dominio exercem em nossa impressionavel imaginação, a ponto que nos não abandonão, mesmo nas quadras mais viris da existencia.

Não querendo penetrar no labyrintho enredado das discussões theologicas, o que seria, além de uma prova censuravel de nossa incompetencia na materia, inqualificavel abuso da paciencia dos leitores, vamos abandonar o campo das apreciações historicas e dogmaticas, para entrar nos dominios azulados da imaginação e do romance, onde estamos certo ser acompanhado pelos que nos leram com mais algum interesse e curiosidade.

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Quem olhar para o titulo destas paginas, e não conhecer as lendas populares do Brazil, perguntará de certo:

O que é o Sacy?

Confesso que a resposta nos deixa visivelmente embaraçado.

O Sacy é um espirito que talvez pertencendo á classe dos beneficos, se diverte em travessuras que tomão ás vezes a apparencia de malignidades, dirá o conspicuo classificador, entendendo de si para si haver feito o mesmo achado, que um botanico encaixando uma planta entre as familias do sabio e paciente Linneo.

O povo, porém, sem conhecer cousa alguma destas arguciosas classificações, diz em sua linguagem mais pittoresca cousas muito mais bonitas a respeito destas sobrenaturaes apparições.

Ninguem póde definir positivamente o que seja o Sacy; porém muita gente ha, que o teem visto com seus proprios olhos, e muito mais ainda quem tenha sido victima de seus caprichos, e observado os effeitos patentes das diabruras destes inquietos e atrevidos perturbadores do socego das familias.

As velhas,autoridades muito respeitaveis em questão de tanta ponderação, attribuem á influencia do Sacy a maior parte dos transtornos que nos embaração a vida e não pódem ser explicados por cousas conhecidas e notorias.

Se o cachorro da casa appareceu morto no meio do terreiro, se a lamparina se apagou antes da hora acostumada, se a menina amanheceu com dôres de cabeça e não pôde ir ao collegio, se o melhor petisco que a cosinheira havia preparado para o jantar desappareceu como por encanto de cima do aparador, se um parente agiota se lembra de nos armar uma demanda, se finalmente o cobrador da decima urbana bateu de manhã á porta, em alguma terça-feira de má catadura, tudo isto são artes do maldito Sacy, que esquadrinha todos os meios de atormentar um christão.

Quando os tropeiros pernoitão em algum rancho descampado, e no dia seguinte vão encontrar a tropa desbarrigada, apezar do farto capinzal do pastorejo, dizem elles logo sem vacillar:

- Foi o Sacy, que andeja de noite cavalgando nos animaes.

As pessoas que tem visto este genero de diabretes não estão de perfeito accordo em suas narrações ácerca da fórma que apparecem estas travessas creaturas.

Uns dizem que o virão sob a figura de um negrinho de barrete vermelho, fazendo caretas aos transeuntes, e escarranchado em cima de uma porteira velha, ou no cimo da roda do engenho, quando está parada a moagem.

Outros, porém, affirmão que o Sacy, é uma ave de muitas pennas, que larga fogo das azas, se encontra nas estradas, e que esvoaça de noite com os gyros incertos do morcego, soltando uns pios lastimosos, e pousando de vez em quando nas torres silenciosas da igreja em ruinas.

As tradições, como se vê, são tão variadas, que, por melhor que seja a nossa bôa vontade, não podemos dar ao leitor uma definição clara e precisa do que seja um verdadeiro Sacy.

Uma noite, estando eu sentado á beira de um lago tranquillo e em frente de uma soberba floresta virgem, vendo os raios da lua infiltrarem-se por entre as ramagens do arvoredo e brincar na superficie ligeiramente ondeada das aguas.

Reinava um silencio profundo em toda a natureza! Os troncos erectos de jequitibá, os leques debruçados das palmeiras, as copas das figueiras bravas e as corôas melindrosas dos palmitos não fazião o mais pequeno movimento, porque nem uma só briza passava por entre seus festões de folhagem e suas cortinas de verdura.

De vez em quando, porém, espalhava-se no ambiente um aroma suave de perfumes balsamicos. Era um cheiro embriagador que se não respira senão no seio agreste dos matos e nas solidões encantadas do novo mundo.

Eu estava embebido nesta contemplação em um enleio tão delicioso, que nem lembrava que existia.

De repente toda a floresta se agitou, como se houvessem roçado por seus ramos as azas de um furacão! Um som ouco e cavernoso resoou por toda a montanha! Um clarão singular passou de subito ante meus olhos, e senti-me momentaneamente tomado de indiscriptivel terror!...

Tudo cahio, porém, de novo, no mais profundo silencio; e quando voltei á pousada, que ficava, que ficava d'alli a pouca distancia, e contei aos tropeiros o que me havia acontecido, responderão-me com voz mal distincta, e pondo o dedo significativamente na bocca com ar de espanto: 'Patrão, foi o Sacy!'

É o que acabo de narrar tudo quanto posso dizer aos leitores ácerca desta apparição sobrenatural, que no primeiro momento, não devo occultal-o, mo causou um effeito pouco de accôrdo com a segurança do logar.

Esta affirmativa conscienciosa dos tropeiros despertou em mim uma natural curiosidade, e sentando-me juntou ao fogo, em torno do qual os meus companheiros, de pouco conversávão fumando seus compridos cigarros de palha, pedi-lhes que me contassem alguma historia do Sacy, pois muito desejava conhecer porque motivo fallavão a seu respeito com tão reservada desconfiança.

Então, não sem se haveram primeiro consultado com os olhos, o mais autorisado pelos annos, pelo aspecto grave e physionomia sizuda, dos tropeiros, fechando mais o circulo em torno da lareira, começou com voz pausada, e em sua linguagem pittoresca, a seguinte narração, que quasi textualmente conservei em meus apontamentos de viagem.

A.E. ZALUAR."

Fonte: O VASSOURENSE: PERIODICO IMPARCIAL, NOTICIOSO E LITTERARIO (Vassouras/RJ), 03 de Dezembro de 1882, pág. 01-02

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