sexta-feira, 11 de agosto de 2017

A aldeia dos imigrantes alemães

Uma aldeia alemã do tipo "rundling"
Fonte: WEIMER, Günter. A arquitetura rural da imigração alemã. In: WEIMER, Günther (org.). A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p. 95-99.

"Para entendermos o universo de problemas que o imigrante teve de enfrentar para construir sua casa ao chegar no Brasil, creio que devêssemos começar por fazer uma confrontação de sua cultura com a que viria encontrar na nova terra. Ainda que as duas culturas fossem de origem europeia, cada uma continha um universo de conceitos e concepções próprios que, se tinham alguns aspectos paralelos, em não poucos casos, eram diametralmente opostos.

Talvez o aspecto mais importante fosse a concepção de Estado. A forma como o mesmo se institucionalizou no Brasil, era de origem lusitana e se caracterizava por uma administração extremamente centralizada. Portugal passou a existir com o seu rei e a inexistência deste significou a perda da independência do país. A identificação entre monarca e nação também foi transferida para o Brasil, onde país, cultura e língua (para citar apenas três parâmetros) eram grandezas perfeitamente identificáveis e sobrepostas. Na Europa Central isto não aconteceu. Desde o início da fase histórica, esta região foi ocupada por diversas tribos com vários tipos de governo, de línguas e de cultura diferentes. Estes povos conviveram lado a lado onde eventuais domínios passageiros de um sobre outro não significaram aniquilamento de uma das partes. Enquanto Portugal era um só reino dizia-se que na Europa Central havia mil. Aí a unidade língua-cultura-nação se rompe e cada categoria passa a ter sua própria dimensão. Tanto isto é verdade que o conceito de nação só viria a se afirmar quando no Brasil estávamos às vésperas de formar uma república. Até hoje existem povos de língua alemã que jamais pertenceram à Alemanha da mesma forma como existem povos de cultura germânica que não falam o alemão.

Em consequência da centralização do poder, surgiram, em Portugal e no Brasil, grandes cidades polarizadoras de uma ampla região pouco povoada. Na Europa Central, ao contrário, havia-se constituído uma ocupação ganglionar com um grande número de pequenas cidades rodeadas por uma infinidade de pequenas aldeias. Se aqui o contraste cidade-interior é acentuado, lá a diferença é bastante atenuada. É claro que a infraestrutura de uma aldeia teria de ser menos diversificada que a de uma cidade. No entanto, a interpenetração de uma na outra era bem marcada. A cidade era, por assim dizer, uma aldeia em escala macro e a aldeia, uma microcidade. Esta origem imprimiu uma conformação diferente às cidades contemporâneas. Aqui temos uma alta densidade no 'centro', que decresce à medida que nos afastamos em direção aos bairros. Nossas cidades têm um aspecto de célula em que a importância das funções é inversamente proporcional à sua distância ao núcleo. Na Alemanha, a cidade tem o aspecto de uma colônia de células em que cada bairro evoluiu de uma antiga aldeia e que mantém uma vida relativamente independente. Aqui os arranha-céus estão no centro; lá, na periferia. Lá, ir ao centro significa ir à cidade histórica, à parte antiga; aqui os centros são constantemente modernizados, com edificações cada vez mais arrojadas.

Quanto à paisagem rural, a diferença não é menos flagrante. Portugal é um país quase árido, onde as raras árvores são as corticeiras e as oliveiras que se destinam à exploração econômica mais imediata. Este modelo foi transplantado para o Brasil. As extensas florestas existentes antes da descoberta foram tombando à medida em que se ia tomando posse da terra e, ainda hoje, assistimos uma desenfreada devastação da floresta amazônica. A Alemanha, apesar de seu enorme desenvolvimento industrial, hoje está coberta em 1/3 de seu território de florestas e a necessidade de se abater algumas centenas de árvores para a ampliação da pista de pouso de um aeroporto pode causar protestos violentos de uma população inconformada. Até o caráter destas florestas é peculiar: em sua maioria, são plantações de coníferas, cuja única utilidade é a exploração da madeira, cultivadas por engenheiros florestais que mais se aproximam de jardineiros que de politécnicos e onde é exercido um cuidado controle do número de exemplares das diversas espécies de animais nativos.

Ao tratar da arquitetura rural, é importante fazermos uma análise da forma física do aldeamento na época da emigração. Seu núcleo, a aldeia propriamente dita, era formada por casas próximas umas às outras, mas ao contrário das vilas lusitanas nunca eram geminadas. Cada casa tinha, nos fundos, uma horta onde eram cultivados legumes e verduras. Atrás desta, havia um pomar de árvores frutíferas. Em consequência desta disposição, o núcleo era rodeado por dois anéis de vegetação, um interno e baixo com outro alto, periférico.

A evolução formal destas aldeias era muito diversificada e variava de região para região. No contexto da arquitetura teuto-gaúcha, convém nos referirmos às tipologias dos três maiores centros de emigração para este Estado. O mais importante é o Hunsrück onde se institucionalizou a Haufendorf ou Punkdorf (aldeia- monte ou ponto) que se caracterizava pelo crescimento irregular do núcleo. É constituído por uma série de vielas curvas que se entrelaçam, formando espaços abertos sem definição geométrica rígida. Por isto são pitorescas e de perspectivas surpreendentes. Na Vestfália, que se caracteriza pelas grandes propriedades (cerca de 10 ha.), se desenvolveu a Strassendorf (aldeia-rua) em que as casas foram construídas ao longo de uma estrada. Este tipo tem uma variante, a Angerdorf (aldeia-logradouro) na qual a rua se transformou numa praça alongada onde, originalmente, era deixado o gado para o pernoite. Também é encontrado na Vestfália. Já na Pomerânia institucionalizou-se uma variante deste tipo na Rundling (arrendondada) que se caracteriza por ter uma praça circular ao redor da qual estão construídas as casas. Se diferencia do tipo anterior por não 'dar passagem' à circulação: tem um só acesso que é entrada e saída da aldeia.

Este núcleo está implantado no meio das terras cultivadas cuja área varia entre 300 e 500 ha. Em geral, as terras eram de propriedade comunal com seção de domínio e estavam divididas em faixas cultivadas longas e estreitas. Cada família dispunha de um certo número destas faixas onde se praticava uma cultura rotativa entremeada com períodos de pousio, quando eram transformadas em pastagens para os animais.

A terra era escassa. Enquanto na Vestfália, através de leis coercitivas de controle do crescimento populacional, a propriedade se manteve em torno de 10 ha., no Hünsruck 4/5 dos agricultores tinham menos de 5 ha. (onde 15% tinha menos de 0,5 ha). Na Pomerânia ainda vigorava o sistema feudal onde o agricultor não tinha posse da terra.

Essas condições eram de tal ordem que era impossível a sobrevivência da unidade familiar explorando exclusivamente a terra. Por isto foi sendo agregado um trabalho complementar com um vigoroso desenvolvimento do artesanato.

Neste sentido, a existência da floresta periférica à aldeia é duplamente importante. Se, por um lado, fornecia a madeira para o artesanato, atendia ao abastecimento de combustível vital para o aquecimento de homens e animais durante o longo inverno quando os termômetros podiam baixar a 40 graus centígrados negativos.
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