segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Imigração Açoriana em Santa Catarina e Rio Grande do Sul


"O século XVIII marcou o arquipélago dos Açores com frequentes crises demográficas, geradas principalmente pela falta de terras cultiváveis. Sendo um conjunto de ilhas vulcânicas o relevo das mesmas mostrava-se extremamente desfavorável à solução deste problema, pois os diversos picos rochosos existentes reduziam drasticamente a área útil para a agricultura. Aliada à geografia acidentada as permanentes disputas pelo domínio dos terrenos alodiais (envolvendo nobres, Igreja e populares) e as práticas de aforamento esboçavam o quadro da propriedade rural nas ilhas durante quase todo o século.

Na era de setecentos, as naturais insuficiências técnicas lesam o alargamento da superfície arável açoriana. Porém, no âmbito fundiário, individualizamos outras questões, nomeadamente de foro jurídico, que geram entraves de maior consideração. (...) Do mesmo modo, o hábito do absenteísmo, que cresce no decurso dos séculos, dificulta o intensivo aproveitamento das terras. Por fim, a proliferação de vínculos também lesa a produtividade, porque obstante ao reinvestimento dos lucros e à circulação da riqueza.

Na metade do século, o crescimento da população transformou a crônica falta de terras em crises de carestia tornando a situação insuportável para muitos. Em 1746, uma representação açoriana solicitava ao rei permissão para emigrar para as possessões de além mar, visando assim aliviar a superpopulação das ilhas. A Coroa Portuguesa permitiu o deslocamento dos súditos ilhéus para o sul da América, mais exatamente para a Ilha do Desterro (atual Florianópolis) e para a região das Missões jesuíticas, recentemente obtida pelo Tratado de Madri (1750). Esta decisão, entretanto, ocultava o real objetivo de Lisboa: a povoação e defesa das regiões meridionais do Brasil, isto é, a garantia de posse do território que Portugal disputava com Espanha. Assim, embora os habitantes dos Açores tenham requerido a transferência, fora a Coroa portuguesa que determinara sua localização e finalidade.

O edital que regulamentava a passagem dos casais açorianos para a Ilha de Santa Catarina data do ano de 1747 e estabelece as condições de migração e as concessões do governo português. O documento esclarece a intenção da Coroa em formar povoados, baseados na pequena propriedade e também quais as vantagens oferecidas aos colonos: ajuda de custo, vestimenta para as crianças, instrumentos agrícolas, ferramentas, farinha, isenção para os homens de servir nas tropas pagas, animais e uma propriedade de terra de um quarto de légua em quadra. Infelizmente para os casais, estas promessas jamais viriam a se concretizar por inteiro e muito menos para todos os açorianos emigrados. O transporte dos primeiros imigrantes para Santa Catarina, iniciado em 1748, desde cedo se revelou bastante penoso, denunciando o abandono pela autoridade real. O primeiro arrematante do direito de transporte dos colonos, Feliciano Velho Oldenberg, mostrara arbitrariedade e violência em seus serviços, tendo recrutado casais à força e incluído indivíduos doentes, aleijados e idosos, além de outros que não se enquadravam nas condições do edital de 1747. A instalação dos ilhéus no território catarinense também divergia das promessas do edital. Os governadores da capitania de Santa Catarina, José da Silva Paes, e seu sucessor, Manoel Escudeiro Ferreira de Souza, mostraram-se despreparados para acolher o contingente de recém-chegados, pois não lhes haviam sido destinados os recursos para tanto. Não se encontravam na Ilha do Desterro nem dinheiro, nem utensílios para aquela gente, e a posse da terra não figurava próxima. De fato, as autoridades sequer mostravam-se capazes de tratar os que chegavam adoecidos de viagem.

Uma parte do contingente migrante, contudo, encontraria especial dificuldade na busca pela estabilidade. Ainda que os casais desembarcados em Santa Catarina desejassem somente sua instalação imediata e acesso à terra prometida, uma fração destes teria de continuar sua movimentação. A assinatura do Tratado de Madri (1750) por Portugal e Espanha descortinava os intentos da Coroa lusa. Uma vez trocada a Colônia do Sacramento pela região das Missões jesuíticas a leste do Rio Uruguai, Portugal pretendia garantir a posse do novo território missioneiro com esses casais assegurando o controle do mesmo através do princípio do uti possidetis. Para além da ocupação imediata, os povoados criariam um cordão defensivo contra as investidas espanholas; assim a estratégia portuguesa resguardava as estâncias de gado, principal atividade econômica da região, ao mesmo tempo em que ampliava sua área de controle na região platina.

Portugal empreendia um avanço importante para o controle do extremo sul da América. Entretanto, ainda que bem estruturado, seu projeto acabaria frustrado. Ao efetuar a troca de territórios, Portugal e Espanha não contavam com a falta de controle efetio sobre os mesmos. Desafiando a decisão tomada pelas Coroas ibéricas, os índios reduidos nas Missões decidem não acatar a ordem de retirada, preferindo lutar por suas moradias. Tal insubordinação levará os dois reinos a se aliarem para a destruição dos indígenas insurretos. A eclosão das Guerras Guaraníticas, de 1753 a 1756, impede os açorianos de transportarem-se para o terreno disputado e este fato terá importante repercussão em seu estabelecimento no território e sociedade rio-grandenses.

Os colonos açorianos vinham de Santa Catarina em barcos até a vila de Rio Grande onde, a partir de 1752, começaram a instalar-se. Entretanto, o projeto metropolitano não visava alocá-los nesta povoação obrigando-os a seguir para as Missões. A guerra contra os índios guaranis e a indefinição na execução da demarcação do Tratado de Madri impede a travessia e termina por colocar os açorianos em uma instável posição de espera. A demora fez com que muitos começassem a se estabelecer nos locais onde se encontravam, mesmo que não fossem os pretendidos pela Coroa. Para entender a distribuição geográfica dos açorianos, portanto, é preciso analisar sua frustrada tentativa de alcançar as Missões, pois os mesmos acabaram alojando-se nas povoações ao longo do caminho. Os trajetos seguidos pelos açorianos para alcançar as Missões eram basicamente dois e a partir deles podemos encontrar a localização geográfica dos casais estabelecidos no Rio Grande do Sul.

Quando da vinda para Rio Grande do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, a fim de estabelecer os limites do Tratado de Madri, muitos dos homens dos casais açorianos foram obrigados a segui-lo na expedição demarcadora, indo por dentro da campanha até as Missões. Como foi comentado, o ataque dos índios missioneiros impediu a entrada nesse território, fazendo com que governador, expedição e ilhéus tivessem de recuar até o forte de Rio Pardo, que acabara de ser construído. Muitos açorianos chegaram a Rio Pardo desta forma e uma quantidade ainda maior permaneceu em Rio Grande, uma vez que a operação de transporte não se efetuou totalmente. outra fração dos casais deveria ser conduzida para as Missões através de uma segunda rota. A partir de Rio Grande seguiam até a freguesia de Viamão, atravessando a Lagoa dos Patos em barcaças. Em Viamão, alojavam-se nas margens do lago Guaíba esperando o transporte fluvial rio Jacuí acima. Subindo o Jacuí, com escala no armazém militar de Santo Amaro, deveriam prosseguir até Rio Pardo. Esta rota explica o porquê de encontrarmos grupos de açorianos espalhados ao longo do lago Guaíba e rio Jacuí e muitos são os exemplos:

vieram por casal de El Rey para a ilha de Santa Catarina aonde assistiu pouco tempo porque logo se embarcara para a vila do Rio Grande aonde assistiu um ano (...) porque logo vieram embarcados para o porto dos casais deste Viamão e daí foram para Santo Amaro aonde está assistindo na companhia do dito seu pai...

A conjuntura de guerra e a precariedade dos transportes fizeram com que grandes intervalos de tempo passassem na espera de um ponto para outro e muitos dos ilhéus preferiam abrir mão da jornada por um estabelecimento imediato. Em Viamão muitos optaram por deixar a margem do Guaíba e dirigir-se para junto da capela no centro da freguesia. Deteremo-nos neste grupo com mais atenção, acompanhando sua busca por inserção em uma sociedade já existente, ainda que em construção."

Fonte: COMISSOLI, Adriano. Do Arquipélago ao Continente: estratégias de sobrevivência e ascensão social na inserção açoriana nos campos de Viamão. In: Aedos, Porto Alegre/RS, v.02, n.03, 2009, pág. 74-78.
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