segunda-feira, 9 de abril de 2018

A gastronomia portuguesa


"Mesmo em tempo de globalização (ou até por conta deles, como uma forma de reação), os portugueses se mostram muito ligados às suas origens, seu local de nascimento ou o de seus antepassados. Reconhecem-se como 'minhotos', 'algarvios', 'beirões', 'alentejanos', 'transmontanos' ou 'ilhéus', por exemplo.

A temática regional é algo muito atraente para os pesquisadores acadêmicos. E 'recuperar as raízes', conhecer a região, a cidade ou a aldeia 'da família' é atividade que entusiasma profissionais e amadores em Portugal.

A valorização das identidades regionais também está nos corações e mentes de emigrantes portugueses espalhados pelos quatro cantos do mundo. No país hospedeiro, além da Casa de Portugal, costumavam fundar e ainda mantêm 'Casas' do Minho, da Beira, do Alentejo... Tais 'Casas' são associações culturais, desportivas e sociais que procuravam reunir os portugueses que vivem fora de Portugal, esforçando-se por manter tradições trazidas 'lá da terrinha'.

A gastronomia regional portuguesa tem, entre os portugueses e estrangeiros, um forte apelo. Além de reforçar identidades locais, tem servido como estímulo ao turismo, sendo, por isso, uma importante fonte de divisas. A diversidade interna do pequeno país tem atraído estrangeiros de várias partes do mundo; os pratos típicos de cada localidade estão entre os carros-chefe do marketing turístico.

Dos inúmeros pratos salgados à rica doçaria, somados aos famosos vinhos nacionais, Portugal, tem, de fato, muito a oferecer.

O ingrediente mais conhecido da gastronomia portuguesa entre os brasileiros é o bacalhau. Em Portugal, ele é chamado de 'fiel amigo', por estar presente na 'mesa do rico e na do pobre', em muitas ocasiões, especialmente nas comemorações natalinas. Na véspera do Natal, a 'Consoada', receita que tem o bacalhau como base, é o prato escolhido 'por nove entre dez portugueses'.

Os portugueses 'descobriram' o bacalhau no século XV, na época das grandes navegações. Seus primeiros apreciadores haviam sido os vikings, muitos séculos antes. No século IX, já existiam fábricas para processamento de bacalhau na Islândia e na Noruega. O preapro, contudo, consistia em apenas deixar o peixe secar ao ar livre até que perdesse quase todo seu peso e endurecesse como uma tábua, para que pudesse ser consumido em pedaços por um longo tempo. O bacalhau curado, salgado e seco, tal como costumamos comprar no Brasil, foi criação de habitantes dos Pirineus (entre a Espanha e a França) que passaram a comercializá-lo por volta do ano 1000. A nova forma de preparo agradaria os navegadores portugueses, quatro séculos mais tarde, por garantir uma melhor conservação do produto. Eles precisavam de alimentos que suportassem as longas viagens marítimas. O ingrediente logo se popularizou e, no início do século XVI, o bacalhau já correspondia a 10% do pescado comercializado em Portugal. Incorporou-se aos hábitos alimentares dos portugueses e virou parte importantíssima da tradição. Em carta enviada no século retrasado ao historiador e político Oliveira Martins, o famoso escritor Eça de Queirós declarou:

Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês - excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada!

O amor é tanto que, atualmente, os portugueses são os maiores consumidores de bacalhau do mundo.

Em Portugal podemos saborear o bacalhau preparado de infinitas maneiras, para além da nossa conhecida 'Bacalhoada' com batatas, cebolas, ovos e pimentões, que - graças aos portugueses - também é prato tradicional no Brasil, apreciado especialmente na Sexta-Feira Santa e no Sábado de Aleluia.

A cozinha lusa pode agradar paladares exigentes, mas também intimidar estômagos sensíveis. Pratos tradicionais pesados e calóricos como 'Rojões à moda do Minho' ou 'Papas de sarrabulho' podem se tornar uma aventura gastronômica inesquecível! Os tais rojões são feito à base de carne de porco, cortada em cubos e temperada na banha e no vinho, levam ainda tripas, fígado de porco e sangue cozido. Nas 'Papas de sarrabulho' vão fígado de porco, bofes de porco, goelas de porco, coração de porco, osso da suã de porco, galinha gorda, carne de vaca, sangue de porco cozido e farinha de milho peneirada.

Os pratos fortes do Norte estão associados às carnes, aos 'enchidos', às 'alheiras', 'às morcelas' (feitas com o sangue de porco) e aos 'chouriços'.

Trás-os-Montes é o berço da 'posta a mirandesa': carne de vaca temperada com sal grosso e grelhada em brasas, servida com 'batatas ao murro', assadas no sal com a casca, e 'grelos salteados'. Essas batatas têm inúmeras receitas e a mais comum é a que recomenda lavar as batatas e, em seguida, cozinhá-las por cerca de 30 minutos em fogo médio. Ao saírem do fogo, devem ser colocadas em um pano de prato, onde estão prontas para receber o 'murro' (é um soco mesmo!). Depois, são temperadas com azeite, sal grosso e alecrim e levadas ao forno em uma assadeira por 15 ou 20 minutos. Os grelos são os talos ou as hastes de legumes, como nabo e couve-flor, por exemplo. 'Saltear' é uma forma de cozinhar pequenos pedaços de alimentos em lume (fogo) alto com pouca gordura.

Os 'enchidos' são feitos com carne e gordura de porco, carne de aves, pão de trigo, azeite e banha condimentados com sal, alho e colorau (doce ou picante). Podem ainda incluir carne de caça, a carne de vaca, salpicão e/ou presunto. Os 'enchidos' têm formato de cilindros curvados como ferraduras, seu invólucro é de tripa natural (de vaca ou de porco) e o recheio é composto pelas carnes desfiadas unidas por uma pasta fina.

A origem das 'alheiras' remete às artimanhas que os judeus desenvolveram para escapar das perseguições impostas pela Inquisição. Como os israelitas religiosos não comem carne de porco, para escapar à repressão da Igreja Católica substituíam esse ingrediente por outras carnes (como vitela, coelho, peru, pato, galinha ou perdiz) envolvidas por uma massa de pão que lhes conferia consistência. Assim, como todos os vizinhos, eles também defumavam seus 'enchidos', não atraindo as suspeitas dos demais. Mais tarde, a receita acabaria por se popularizar também entre os cristãos, embora estes acrescentassem carne de porco ao preparo.

No Alentejo, um dos pratos típicos é a 'carne de porco à alentejana', em que a carne é preparada com banha, vinho, alho e ameijoas (mariscos). Esse prato é preparado cozido em fogo brando na cataplana, uma espécie de panela composta por duas partes côncavas que se encaixam com auxílio de uma dobradiça.

As sopas estão em praticamente todas as refeições dos portugueses. A mais conhecida é o 'caldo verde', feito à base de batata, couves e chouriços.

Por último, uma especialidade gastronômica incorporada há poucas décadas nos bares portuenses: a 'francesinha', uma novidade trazida por conta da emigração portuguesa para a França. A 'francesinha' é uma sande (sanduíche no pão de forma) recheada com carne de vaca, linguiça de porco, salsicha fresca e fiambre (presunto cozido) e coberta com queijo e um molho especial chamado 'molho de francesinha', que leva cerveja, caldo de carne, folhas de louro, margarina, Brandy ou Porto, farinha maisena, polpa de tomate, tomate fresco, leite e piri-piri (um tempero picante)."

Fonte: SCOTT, Ana Silvia. Os portugueses. São Paulo: Contexto, 2012, p. 85-87.
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