sábado, 9 de junho de 2018

Um duelo em Alegrete em 1846


"No ano de 1846, ao fim do mês de maio ou no princípio do mês de junho ocorreu um duelo no Terceiro Distrito da Vila de Alegrete, entre o alferes Francisco Machado Pacífico e Patrício Pinheiro, resultando na morte deste último. O autor do repto, Patrício Pinheiro, que desafiou seu oponente através do envio de uma carta acompanhada de uma luva, foi o próprio vitimado do embate. Francisco Machado Pacífico, por sua vez, figura no processo como réu por haver assassinado ao seu contendor. Conforme o auto de corpo de delito, o corpo de Patrício Pinheiro, possuía talhos no rosto, um 'pontaço' no meio do peito e estava degolado.

Conforme o depoimento do réu no processo crime, este afirma que quando recebeu a carta de ofensa e a luva, se negou a duelar; porém, indo para a sua casa encontrou Patrício Pinheiro em uma coxilha e este o provocou, ao que Francisco Machado Pacífico viu-se obrigado a reagir e defender-se.

Diz o Alferes do (ilegível) 2 Linha Francisco Machado Pacífico que tendo recebido o cartel junto o [Suplicante] se portou com dignidade e não quis aceitar a luva porem sahindo para sua casa na Costa de Quarahim, encontrou com Patricio Pinheiro, que na coxilha o desafiou, e o [Suplicante] para defender a sua vida pos-se em guarda, e o Supplicando lhe deo um tiro de pistola que felizmente não foi (ilegível) e puxando ambos por armas brancas recebeo o [Suplicante] as feridas no joelho e outra na mão esquerda [...].

Conforme o depoimento da testemunha, Marcos Joze de Souza, Patrício Pinheiro havia lhe contado que o Alferes Francisco havia recusado um negócio com Patrício, que julgava haver sido por proibição da mulher de Francisco, dizia Patrício caçoando do oponente, 'por medo de apanhar da mulher'. Passados alguns dias, Patrício teria enviado uma carta de conteúdo bastante ofensivo a Francisco desafiando-o para baterem-se em duelo. Segundo o relato da testemunha João Batista de Souza, no momento do desentendimento, Francisco Machado, que estava armado com um rebenque, teria afrontado a Patrício Pinheiro que respondeu dizendo 'Patife, voucé me dis isto, he porque eu estou desarmado, eu não sou como voucé, que se dizia governar por mulhe'.

No auto do corpo de delito, os peritos indicam que talvez não fosse apenas um homem que matara Patrício Pinheiro 'por serem [feridas] (ilegível) pelaz Costa e todas mortaes' e por haver vários rastros de cavalos no local. A mesma afirmação é feita por Floriana Maria Pinheiro, esposa de Patrício Pinheiro. Porém, a quinta testemunha, Clementino Joze Pereira, que foi quem enterrou o corpo e avisou o cunhado do falecido, afirmou que a ferida nas costas era da ponta da espada que varou o corpo e que os vários rastros de cavalos eram do seu cavalo e do cunhado de Patrício Pinheiro que foram ao local duas vezes, afirmando, assim, que o Alferes estava sozinho com Patrício Pinheiro.

Basicamente, considerado os aspectos que constituem as regras de um duelo, este só deverá ter lugar quando o sentimento de honra de um indivíduo é ofendido e o insultado pode revidar. Um duelo só pode ocorrer entre pessoas que se reconhecem mutuamente como cavalheiros, ou seja, desafios vindos de sujeitos considerados inferiores social e moralmente sequer deveriam ser levados em conta. Antes do lançamento do desafio podem haver tentativas de reconciliação através de pedidos de desculpa, nos casos mal sucedidos o ofendido desafia o rival, jogando a luva na sua frente e/ou enviando um cartão de desafio, com hora e local marcados. Nos duelos de cavalheiros, carregados de normatizações, a presença de padrinhos - que muitas vezes tentavam conciliar os rivais para evitar o duelo - e médicos era comum, já que a assistência de terceiros também cumpria papel no reconhecimento público de que a honra fora reabilitada. Normalmente as armas utilizadas eram brancas e deveriam ser do mesmo tipo entre os querelantes; caso um deles estivesse em desvantagem, o desafio não devia acontecer. Geralmente, aquele que está vencendo podia escolher entre preservar a vida do adversário ou matá-lo; contudo, o super regramento e a cavalheirização pela qual passa a prática do duelo no Prata leva a que a maior parte dos duelos não acabassem em morte, sendo que esse desfecho nem parecia mais ser a intenção de fato da disputa, mas apenas provar a coragem de aceitar o desafio e lavá-lo até que uma das partes fosse apenas ferida ou até que a parte ultrajada declarasse sentir-se satisfeita e reparada.

Neste processo-crime, podemos perceber elementos que pertencem ao ritual de duelar, os quais acabam por diferenciar este caso das demais ocorrências. Entre eles destaca-se a carta de desafio em que Patrício Pinheiro lança o repto e chama o oponente para o duelo com palavras ofensivas. Outro elemento componente do ritual e presente no processo é a luva que, ao ser jogada no chão perante o adversário, o interpela para a disputa. Nesse caso a luva foi enviada junto com a carta, mas aponta o conhecimento de algum código. A recusa do desafio, em um primeiro momento, por parte de Francisco, também pode indicar certo domínio dos códigos que informam o ritual, considerando que o desafiado pode não ter reconhecido no desafiante um oponente 'a sua altura'. Contudo, outros elementos aproximam essa ocorrência de uma prática não ritualizada por códigos de honra de elite: o teor da carta de desafio, por exemplo, adota uma linguagem extremamente ofensiva, e a morte seguida de, ou através de, degola também constitui um ato revelador da ausência de normatização.

A princípio não se deve recusar um duelo, isso demonstra fragilidade e covardia, a não ser que o desafiado considere que aquele que o desafia lhe é inferior e, portanto, não é digno de duelar. É possível, portanto, considerar que o desafiado tenha recusado o duelo por não reconhecer dignidade e honradez no oponente; mas, de outra parte, Francisco também não se mostra totalmente imbuído dos regramentos rituais quando, ao enfrentar seu oponente, imprime como desfecho da morte a degola do mesmo. Segundo Bouton, 'bien sabemos que degollado un animal, es la mejor manera de que sangre bien'. Dessa maneira, a degola, ou qualquer ferimento produzido na cabeça, é uma ação carregada de significado que remete à submissão e inferiorização proposital do oponente, sendo um expediente reconhecidamente utilizado na cultura bélica platina em vários conflitos, chegando a denominar um deles: a Revolta da Degola, ou Revolução Federalista de 1893. Com isto percebemos que a degola cometida pelo Alferes Francisco corresponde a um elemento presente nessa cultura, que tem por finalidade a humilhação irreversível do rival através da profanação do corpo que levaria a desonra da derrota para o túmulo."

Fonte: FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson & AREND, Jéssica Fernanda. Noções de honra e justiça entre as classes populares da fronteira no Brasil meridional na segunda metade do século XIX - estudo de casos. In: Aedos, Porto Alegre, v.9, n.20, ago. 2017, p. 306-308.
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