segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Costumes e superstições do Brasil em 1879


"Os nossos homens das praias e margens dos grandes rios são dados ás pescas; raro é o individuo entre elles que não tem sua pequena canôa. Vivem de ordinario em palhoças, ora isoladas, ora formando verdadeiros aldeamentos. São chegados a rixas, amigos da pinga e amantes da viola. Levam, ás vezes, semanas inteiras dançando e cantando em chibas ou sambas. Assim chamam-se umas funcções populares em que, ao som da viola, do pandeiro e de improvisos, ama-se, dança-se e bebe-se. Quasi todo o praeiro possúe o instrumento predilecto, e canta ao desafio. Si os lavradores vizinhos mandam convidar esta gente para trabalhar nas roças, ella não apparece sinão raramente. Si a convidar para um chiba, apparecem cincoenta de uma pancada. Tive occasião de verificar o caso numa fazenda da costa. havia um hospede em casa que desejava vêr um chiba para estudal-o. Apresentou seu desejo ao dono da fazenda e este mandou chamar comparsas para a funcção. Já era por tarde quando se deram as providencias; antes porem de vir a noite mais de cincoenta cavalheiros e damas estavam dançando no salão!

Lembra-me de um velho que, não podendo mais dançar e tocar, me dizia melancolicamente: eu fui aquelle qui pissuiu sete violas... Isto é caracteristico.

Os habitantes das mattas são dados á lavoura e chamados mattutos em Pernambuco, tabaréos em Sergipe e Bahia, caypiras em S. Paulo e Minas, e mandiócas em algumas partes do Rio de Janeiro. Tambem são em geral madraços e elevam todo o seu idéal a possuir um cavallo, um pequira, como chamam. Vivem de ordinario nas terras dos grandes proprietarios, que são verdadeiros senhores feudaes, a titulo de aggregados.

Os homens dos sertões são criadores. O sertanejo é, por via de regra, vaqueiro. Este é um typo brutal, vestido de couro dos pés á cabeça, monteador feroz. Sempre cavalleiro eximio.

Os habitantes das trez zonas, aqui descriptos rapidamente, são supersticiosos.

Suas superstições divido-as em duas classes: as que tem tomado um caracter mais ou menos accentuado e historico por vezes, e as ordinarias e communs.

As primeiras hão sido certos movimentos com caracter pseudo-religioso. Entre ellas, destaca-se o movimento ha poucos annos produzido por um tal Maurer, no Rio Grande do Sul, e de que os jornaes deram conta. Um impostor arvorou-se em propheta e arrebanhou após si grande numero de ingenuos e velhacos.

Mais temeroso foi o phenomeno da Pedra Bonita ou Reino Encantado em Pernambuco em 1836.

Houve ahi scenas horriveis de fanatismo e larga carnificina.

Mais recentemente, tive o ensejo de estudar dois acontecimentos analogos, ainda que mais innocentes. Um passou-se no logar denominado Carnahybas proximo á Villa do Riachão, na provincia de Sergipe. Dois pretos velhos alienados fizeram morada numa casinhola onde havia uma Santa-Cruz. As pessoas que tem viajado pelo interior conhecem estas especies de nichos esparsos aqui e acolá pelo paiz e asylando sempre uma cruz. Algumas d'estas passam por milagrosas e estão ornadas de reliquias e milagres. Pois bem, os dois negros num theatro destes entraram a fazer sermões, e para logo viram grupar-se em torno de si enorme multidão. Estabeleceram o communismo das mulheres, e fizeram predicas infamantes.

Foi mister a intervenção da policia para desmanchar-se o ajuntamento.

O ultimo phenomeno da especie que tenho de apresentar teve um theatro ainda mais vasto. Um individuo criminoso do Ceará saiu a fazer penitencia a seu modo, e inaugurou predicas publicas pela mesma forma por que os nossos enfastiados, sedentos de nomeada inauguram conferencias... No seu percurso veiu ter aos sertões da Bahia e fundou uma igreja em Rainha dos Anjos. - Chamava-se Antonio e o povo o denominava o Conselheiro. Passou por Sergipe, onde fez adeptos. Pedia esmolas e só aceitava o que suppunha necessario para a sua subsistencia, no que divergia de nossos mendigos vulgares.

Não tinha doutrina sua e andava munido de umas Horas Marianas, donde tirava a sua sciencia!

Era um missionario a seu geito. Com tão poucos recursos fanatisou as populações que visitou, que o tinham por Sant'Antonio Apparecido!

Prégava contra os pentes de chifre e os chales de lã, e as mulheres queimavam estes objectos para o satisfazer. A musa popular vibrou a seu respeito e exhalou-se em quadras como estas:


<< Do ceu veiu uma luz
Que Jesus Christo mandou;
Sant'Antonio Apparecido
Dos castigos nos livrou.

<<Quem ouvir e não aprender,
Quem souber e não ensinar
No dia de Juizo
A sua alma penará!>>

As chamadas - Santa-missões são phenomenos quasi analogos.

Além d'estas superstições em grosso, por assim dizer, existem as ordinarias e vulgares, que são de todos os dias.

Escreveria um volume inteiro, si fosse a descrever as da especie que tenho presenciado. Limitar-me-ei a poucas.

A proposito de molestias revelam-se algumas muito interessantes. Quasi todas as doenças para o povo vem a ser: a espinhela caída, o flato e o feitiço.

Curam todas com benzeduras, ou promessas a santos. A espinhela caída é um incommodo do estomago ou da parte posterior do esternon, que o povo conhece e descreve. O modo de a curar é sujeitar-se o paciente a que um curandeiro o benza com as seguintes palavras que pude obter não sem difficuldade:

<<Espinhela caída.
Portas para o mar;
Arcas, espinhelas,
Em teu lugar!...
Assim como Christo,
Senhor Nosso, andou
Pelo mundo, arcas,
Espinhelas levantou.>>

Fazem-se cruzes nos pulsos, estomago e costellas.

O flato são phenomenos nervosos tambem curados com rezas. O feitiço é cousa que dizem ser feita por alguem.

Para fazer sair uma espinha da garganta, a reza é esta:

<<Homem bom.
Mulher má, 
Casa varrida,
Esteira rôta,;
Senhor São Braz
Disse a seu môço
Que subisse ou descesse
A espinha do pescoço.>>

Para o soluço temos que o paciente mune-se de um copo d'água e pergunta:

<<Que bebo?
Curandeiro: <<Água de Christo, 
Que é bom p'ra isto.>>

Tres vezes se repete a pergunta e outras tantas a resposta.

Para o cobrelo (cobreiro chama-lhe o povo) estabelece-se entre o doente e o benzedor o seguinte dialogo:

<< - Pedro, que tendes?
- Senhor, cobreiro.
- Pedro, curae.
- Senhor, com que?
- Aguas das fontes,
Hervas dos montes.>>

Quanto ao mal do baço  proveniente de sezões, o povo costuma a cortar a dureza. O methodo consiste em collocar o doente em pé sobre uma folha de bananeira ou sobre o capim pé de galinha e o curandeiro vae com uma faca marcando a aconfiguração do pé, e perguntando: <<o que corto?>> Ao que responde o doente: <<Baço, dureza, obstrucção.>> Isto, tres vezes, findo o que o capim ou o pedaço da folha de bananeira recortada na fórma do pé é cosido num breve, que é posto ao pescoço do enfermo. Quando a folha seccar, desapparecerá a dureza.

Tambem acreditam no máo olhado e quebranto. Certas molestias da cabeça dizem ser o sol, a lua, ou as estrellas que entraram na cabeça do padecente. O modo de as medicar é: - collocar uma toalha dobrada sobre o craneo do individuo affectado e sobre a toalha um copo com agua emborcado. A reza que acompanha esta operação, que para mim é uma reminiscencia da trepanação historica, - segundo a descreve Broca, é a seguinte: Jesus Christo nasceu, Jesus Christo morreu, Jesus Christo resuscitou. Si estas trez palavras são verdadeiras vos farão sarar desta enfermidade.>> Segue-se o crédo. Repetem-se trez vezes a oração e o crédo.

Depois se offerece. O offerecimento é este: <<Offereço este benzimento á sagrada paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Christo.>> Depois repete-se o Bemdito e o Em nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo trez vezes.

Para o veneno da cobra existe o fechamento do corpo, que é uma oração que se traz ao pescoço. Tambem serve para preservar de faca de ponta e tiro de bala.

Quando cae um argueiro no olho de alguem, reza-se:

<<Corre, corre, cavalleiro,
Vae na porta de São Pedro
Dizer á Santa Luzia
Que me mande seu lencinho
Para tirar este argueiro.>>

Tambem existem superstições com certos animaes. A coruja é de máo agouro. A esperança e a lavadeira de bom. Acreditam no lobishomem, na mula sem cabeça e na mãi d'água, animais encantados.

O excremento da vacca é empregado para lavar a roupa e o corpo.

Lembro este facto por encontrar n'elle uma reminiscencia do culto que se dava á vacca e ao seu excremento na Persia e na India.

O do cachorro, chamado jasmim do campo, emprega-se na cura da variola. É um outro symptoma do atrazo popular.

Quando sobrevêm as terríveis seccas, em alguns pontos, procuram conjural-as, fazendo procissões, e mudando um santo de um logar para outro. Tambem para experimentar-se si o anno será secco ou chuvoso, costuma-se tirar a prova de Santa Luzia, que consiste, em collocar-se um bocado de sal numa vazilha, na vespera do dia da santa, em logar enchuto e coberto.

Si o sal amanhecer molhado choverá; ao contrario, não. - Conta-se que no Ceará fizeram esta experiencia diante do naturalistas George Gardner; mas o sabio, fazendo observações metereologicas, e chegando a um resultado differente do attestado pela santa, exclamou em seu portuguez atravessado: <<Non, non, Luzia mentiu.>>

Quando perdem um objecto, costumam invocar São Campeiro, personagem que não consta do calendario, e São Longuinho, patriarchas das cousas perdidas.

A São Campeiro accendem vellas pelos mattos e campos. Para São Longuinho, quando encontram o o objecto perdido, gritam: <<Achei São Longuinho!>> Isto trez vezes.

Algumas mulheres quando entram n'agua, para tomar um banho, dizem:

<<Nossa Senhora lavou
Seu bento filho p'ra cheirar,
Eu me lavo p'ra sarar.>>"

Fonte: REVISTA BRASILEIRA (RJ), edição 001, 1879, pág. 198-203.










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