terça-feira, 29 de maio de 2018

A origem da tradição dos doces de Pelotas


"A tradição dos doces finos origina-se entre as elites luso-brasileiras, vinculadas historicamente aos latifúndios dedicados à pecuária extensiva e à produção de carne de charque, situados na Planície Costeira do Rio Grande do Sul durante o século XIX e início do século XX. Herdeiras da culinária portuguesa foram as mulheres das famílias mais abastadas da cidade de Pelotas que reinventaram as receitas tipicamente lusitanas, num intercâmbio alimentar que enriqueceu o leque de sabores da cultura ibérica ao mesmo tempo em que se manteve fiel a seus ingredientes básicos: as gemas de ovos, o açúcar e a farinha de trigo. Assim como a doçaria portuguesa, as variações brasileiras nasceram na intimidade das cozinhas, locais próprios ao manuseio dos ingredientes necessários e para a transmissão de um saber que se ensinava de geração em geração. Avós, filhas e netas sequenciavam a linhagem de mestres e aprendizes, ainda que certo mistério ao redor das receitas preferidas pudesse se fazer presente mesmo entre as mulheres da mesma família. Isso porque as encarregadas de assegurar a gostosura das sobremesas deviam ter competências e habilidades específicas, de modo que o domínio das receitas 'pertencentes às gavetas trancadas a sete chaves das senhoras aristocráticas' deveriam ser abertas apenas esporadicamente e por mãos bem conhecidas.

Dentre as possibilidades quase inesgotáveis de combinações, recombinações e elaborações dos três ingredientes característicos da doceria portuguesa, as receitas dos camafeus, quindins, bem-casados, ninhos, pastéis de Santa Clara, amanteigados e fatias de Braga surgiram como iguarias feitas em família, na privacidade das cozinhas das casas mais ricas da cidade de Pelotas. Nesta sociedade, a doceria artesanal tornou-se importante instrumento para a socialização feminina, de modo que a então observada restrição das mulheres à esfera pública fez com que tal atividade se desenvolvesse em um contexto pessoal, sob o lacre da privacidade. A manutenção da doceria na interioridade do lar fez com que as famosas receitas fossem assunto de interesse apenas recreativo de mulheres que deveriam restringir-se aos papéis domésticos. Os doces estavam, então, associados à grandiloquência de uma sociedade que celebrava o convívio em torno da mesa e, especificamente, a uma forma de distinção que ressaltava a importância da educação doméstica feminina através da transmissão do saber fazer dos doces artesanais, através dos livros de receitas, dos ensinamentos práticos e mesmo do consumo das iguarias.

Apesar da forte ênfase na sofisticação e na opulência entre os hábitos de vida da elite pelotense, que perdurou até a metade do século XX e que ate hoje persiste no imaginario dos pelotenses a respeito da identidade local, o modo de vida das famílias ricas entrou em decadência ainda no final do século XIX. Segundo Ferreira et alli (2009), a crise econômica provocada pela queda das exportações da carne de charque trouxe consequências dramáticas para as famílias que compartilhavam de um universo sociocultural no qual as expressões de riqueza se manifestavam nos lugares públicos e eram provadas através do 'gosto'. Foi diante dessas circunstâncias que o saber-fazer dos doces artesanais - outrora símbolos de riqueza e fruição das classes mais favorecidas - aos poucos se converteu em fonte de renda para mulheres 'bem nascidas' que se viram compelidas a trabalhar para complementar o orçamento familiar. A partir das primeiras décadas do século XX, uma primeira geração de mulheres passou a se utilizar, de maneira profissional e com vistas ao provimento da economia doméstica, dos conhecimentos até então aplicados nas cozinhas dos casarões. Desse movimento decorre o início do processo de profissionalização da atividade doceira."

Fonte: CAVEDON, Neusa Rolita & FIGUEIREDO, Marina Dantas de. Os efeitos da patrimonialização sobre as formas de fazer, criar, viver, organizar e consumir o artesanato tradicional. In: XXXVI Encontro da ANPAD, Rio de Janeiro/RJ, 22 a 26 de setembro de 2012, p. 10-11.
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