CIRURGIÕES, CURANDEIROS E BOTICARIOS
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Naquelle tempo, em virtude do edital de 21 de janeiro de 1819, o então juiz comissario do Reino Unido Francisco Antonio Duarte, cirurgião approvado por Coimbra e Paris, inquiriu toda sorte de analphabetos e parvos da villa de Rio Grande, que faziam ás vezes de curandeiros naquellas paragens. Um tanto perdeu a habilitação, outrora garantida por virtude do regimento de 22 de janeiro de 1810, expedido pelo Príncipe regente.
Um pobre diabo africano, de nome Maçambique, velho fleugmático que habitava uma xoupana nas cercanias, era tido em alta consideração pelo povo daquelle porto, pois não lhe faltavam encomios em razão de sua fama de grande curandeiro. Mesmo do capitão mor da villa, era dito que elle mesmo já havia consultado com o tal Maçambique. Alcunhava para si o epicteto de "rezador" e confessava não ter nunca feito nada contra a lei do Reino.
Foi levado á presença do senhor juiz e não demonstrou nenhum pudor em descrever com detalhes os seus processos de curas e rezas, que incluiam beberagens e recitações, suspeitamente não tão catholicas como exigiria o decoro.
Apesar de provisoriamente preso na cadeia da villa, foi solto por rogatória de poderosas auctoridades do local, que argumentavam que o preto não passava de pobre diabo e não era iminente perigo ao exercício da salutar physiologia.
Viveu mesmo, o tal Maçambique, ainda muitos annos, com sua fama de rezador, até pouco depois do Sete de Abril.
Fonte: ALMANAK LITTERARIO DO RIO GRANDE DO SUL, Porto Alegre/RS, edição de 1897, pág. 176.