sexta-feira, 8 de maio de 2020

A Lenda da Chácara Queimada


"A Lenda da Chácara Queimada

Padre PEDRO LUÍS

CAÇAPAVA DO SUL - Esta tradição popular é o julgamento público do coração. É a pregação democrática da Bondade. Possível é que haja nela embelezamentos de lenda, mas sua linha mestre se baseia no verídico. O povo acresceu-lhe viço e flôres, de certo, porém não lhe deu o cerne.

Na Vila do Pinheiro, perto da cidade de Caçapava do Sul, acham-se as ruínas da Chácara Queimada. Antigamente, quando o govêrno premiava o mérito da defesa da pátria com doação de fazendas demarcadas, aquela fração de terra estava embutida no conjunto de bens rurais das irmãs Maria Joaquina Barbosa e Angélica Barbosa. Visitamos e estudamos delongadamente os históricos escombros. Assentam num alto panorâmico, de onde se vislumbra, à noite, o esbraseamento elétrico da Cachoeira do Sul, e, em dias límpidos, se entrevê o pico da Serra do Botucaraí fabuloso. Visitei-a junto com o Professor Eduardo Marin, em seu veículo de grande corpulência prática. Contou-nos a velha história popular o vizinho da porta do casarão em desmantelamento progressivo: Pedro Gomes, homem primaveril. Fomos examinar os antiquíssimos paredões existentes. São pedras irregulares, semeadas de pedregulho e calhaus, parte delas ainda encascada de rebôço. Pena é deixarem ir-se em nada essas antigas paredes cheias de recordações de nosso populário delicado, cobertas de verdor invadente e ensombradas em mimosas goiabas-do-campo e vassouras vermelhas. Por tudo desabotoa a floração. Voam vespas e itatis.

Pedimos o reconto da história a Bráulio Osório dos Santos, José Ferreira Vasconcelos e ao cerne de 94 anos, Américo Gonçalves dos Santos. Êste chegava a cavalo. Vinha de uma marcação na fazenda do dr. Felício Trípoli (Tripes, diz êle), 'onde dei um pialo de laço num que admirou ao deputado Celestino Goulart'. A substância da história, que êles ouviram dos contemporâneos dos habitantes do coração, é esta: chegou ao solar lendário, em meio-dia mormacento, uma pobre mulher - andarilha de sonhos frustrados, alguns anos após a terrível sêca de 1877. Na milionária casa em ruína, entre pomares e figueiras, engrandecida com o suor dos escravos, desdobrava-se uma festa orquestrada de alegria. Transbordava de iguarias, risadas e vinho. O fandango rústico atordoava. Logo que ela mendigou um prato de comida, os donos mandaram escravos buscar no galpão um banquinho e os avios do chimarrão, mais para livrar-se dela do que para serví-la. Após engolar os primeiros chupos da bebida amarga, sob uma figueira, os donos lhe gritaram:

- Retira-te de vereda daqui, bruxa, e deixa-nos sossegados, porque a festa é grande... - Em tão linda casa, observou a esmoleira, é pena ser tão herege o povo... e a casa durar tão pouco! O bem se paga com o bem, e o mal obriga a patear o próximo com o mal. Quem não reparte, não melhora o mundo, nem sua sina...

Depois, retirou-se a pedinte, pois a felicidade dos maus é a calamidade dos bons, disse Públio. Em seguida, a velha se diluiu na curva do caminho. Dizem ter sido Nossa Senhora. À mesma hora, como que atingida por faísca do céu, a casa incendiou-se. Ficaram em pé só as paredes brutais. O travejamento transformou-se em cinza, entre estampidos e baques. Seus donos mudaram-se para Pelotas. Ruíram na vida.

Os pais, desde então, dizem aos filhos, e todos advertem a todos: a ferocidade do coração trouxe sempre fracassos para os homens. A Bondade, em vez, é a hierarquia vivencial de erguido estilo no relacionamento humano. A doação da alma é ideal de nobreza. A índole moral bem conduzida alcança categoria de alta distinção social, sem perda de substância interior. 'O maior homem da História foi o mais pobre' (Emerson). Aquela senhora continha a proclamar as grandes lições da Vida. 'O mundo veste a quem já tem roupa, e desveste a quem já é nu' (Calderón)."

Fonte: O PIONEIRO (Caxias do Sul/RS), 20 de Novembro de 1971, pág. 10

Um comentário:

Joaquim Dias disse...

Ok. Já estarei te seguindo. Aguardo retorno da gentileza.

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