Virada da década de 60 para a década de 70, viviam no Canto Grande (atualmente interior do município de Capão do Leão) o pai, Seu Boaventura, a mãe, Dona Otília, e o filho José Túlio, num rancho à beira da estrada daquela localidade. O Sr. Boaventura era trabalhador rural que vivia de serviços diversos, mas preferencialmente ocupava-se na lida das lavouras de arroz. O filho José Túlio mal cursou até o quarto ano primário, desde cedo acompanhando o pai no trabalho, para complemento de renda da família. A mãe cuidava do rancho e da pequena horta, além da criação doméstica de galinhas.
José Túlio já estava crescido o suficiente para querer ter as próprias escolhas. Uma coisa que lhe fascinava eram os cavalos. Tinha vários amigos que já haviam lhe convidado para trabalhar no trato com os animais. Porém, Seu Boaventura via a aspiração do filho como bobagem e insistia que o mesmo lhe acompanhasse nas lavouras de arroz - ofício que ele considerava mais estável do ponto de vista financeiro. Mas, vai convencer um jovem disso? Mesmo naquela época, o fato gerava tensão entre pai e filho.
José Túlio acabou sendo contratado informalmente por um cabanheiro da região, graças à intervenção de um amigo que também trabalhava lá. Todo empolgado, chegou a avisar a mãe que viria em casa somente a cada quinzena e foi alardear com os amigos o novo emprego. Mas quem disse que o velho Boaventura sabia do trato do filho? E, mais ainda, quem disse que ele concordava?
Boaventura era "bagual" da mais profunda raiz. Filho de pai uruguaio e mãe brasileira, viveu a vida toda na zona rural, mal sabia ler e escrever. Ao mesmo tempo que era leal, dedicado ao trabalho e honesto, era machista, conservador, dono de uma personalidade profundamente rústica. Uma pessoa de seu tempo e contexto, antes de qualquer julgamento.
Foi na tardinha de sábado, quando Boaventura chegou em casa. Tomou seu chimarrão na cozinha, previamente cevado por Dona Otília. Viu, então, duas trouxas de roupas e apetrechos no canto da minúscula sala interligada à cozinha. Perguntou sobre as trouxas e a coitada da mulher timidamente tentava explicar ao marido a decisão do filho de ir trabalhar numa cabanha:
- Pois é, meu véio. O Tuio pegou serviço lá na cabanha do Guimarães. Ele disse que o dinheiro que dá é bom. Tá indo amanhã para lá.
O Boaventura ficou irritado, nem discutiu com a mulher e aguardou o filho chegar, pronto para lhe dar uma tremenda reprimenda.
O filho chegou e imediatamente é interpelado:
- Ô, Túlio! Que bobagem é essa de trabalhar com o Guimarães? Tem que terminar a safra lá na Granja do Chico. Como é que tu vai largar este serviço para pegar outro? Além disso, quem te disse que eu te autorizei a trabalhar com o Guimarães? Enquanto tu estiveres vivendo debaixo das minhas asas, não quero saber de filho meu trabalhando com cavalo. Esquece essa porcaria!
- Mas, pai, eu tenho o trabalho acertado com o próprio Guimarães. Vai ser melhor. O Ramiro e o Gomes também trabalham lá.
- Não vais e pronto! - retrucou o velho Boaventura.
Entre reprimendas do velho e pedidos de consideração do jovem, a discussão chega a seu auge. Neste instante, o José Túlio comete o pecado de falar uma besteira e lembrar ao pai que ele nunca tinha conseguido nada além do que o rancho em que moravam, ao pretender trabalhar com lavouras de arroz. Imediatamente, um som seco de uma batida muito forte ecoa da salinha para os outros cômodos da casa. Dona Otília, muito apreensiva, corre para ver o que aconteceu. Encontra para sua surpresa e desespero o filho desacordado no chão, após ter recebido um único e decisivo murro do próprio pai.
- Homem ignorante, para quê isso? Matastes nosso filho! Guri, acorda! Acorda, guri!
Boaventura não fala nada e sai da sala em direção à cozinha onde leva a mão em direção à chaleira sobre a chapa do fogão à lenha para seguir o mate que tinha parado por causa da chegada do filho. Indiferente, ele permanece lá, calmo e sereno.
Dona Otília aturdida pede o socorro dos vizinhos. Alguns chegam a considerar que se faça um mutirão para que se leve o José Túlio até um hospital na (até então!) distante cidade de Pelotas. Após o alvoroço, o José Túlio acorda já com um monte de mulheres em volta, algumas já chorosas. O rapaz fica quieto e se recompõe. Naquele noite permanece longe do olhar do pai, escondido no próprio quarto.
No outro dia, José Túlio desfaz as trouxas e confirma com o pai que vai concluir o trabalho na lavoura de arroz. O Boaventura não fala nada. Os dias passam e o José Túlio dá uma desculpa e não vai para o emprego na cabanha.
Pelo menos, naquele momento, o jeito rústico e antigo do pai gerou o efeito. Apesar disto, no próximo verão, finalmente Boaventura permitiu que o filho fosse se instalar na cabanha.
O fato é documento dos costumes de uma época. O curioso é que se pode imaginar que, José Túlio possa em função do murro que tomou do pai, tenha guardado mágoa do velho. Ao contrário. Muitos anos depois, José Túlio, casado e com filhos, velava o corpo do pai e orgulhosamente proclamava a importância das lições que aprendeu com o véio desde a infância.
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