terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O Quilombo do Manoel Padeiro - Parte II

"Na primeira chácara assaltada, encontrava-se Lindaura, a esposa do proprietário, Jerônimo Lopes Garcia, o que sugere que a serra não se achava ainda deflagrada pelos ataques quilombolas. Na residência, os quilombolas obtiveram farinha, roupas e três armas de fogo. Na ocasião, Alexandre Moçambique propôs o sequestro da senhora Lindaura. Ao que se opôs Manoel Padeiro, certamente consciente de que a ação determinaria uma perseguição implacável ao seu grupo.

Entretanto, o desejo de Alexandre não foi totalmente negado. Os quilombolas terminam carregando consigo a parda Maria, dos Garcias, de 25 anos, que permaneceu com os quilombolas, segundo parece contra sua vontade, por dois meses. Maria foi a primeira de quatro mulheres - três cativas (Maria, Florência e Doroteia) e uma livre (Senhorinha Alves) - sequestradas pelos fujões. O que corrobora a tese de que os quilombolas iniciaram, com esse ataque, a fase mais agressiva de suas andanças na serra.

O processo registra a quase obsessão dos quilombolas por 'crioulas' e 'pretas'. Após serem desbaratadas por uma partida policial, a primeira iniciativa do grupo - não concretizada - foi assaltar uma fazenda para conseguir aliados e 'pretas'. O fato é compreensível. O desequilíbrio sexual da escravidão é fato registrado pela historiografia. Em média, da África chegavam dois africanos para cada africana. Em 1850-88, nas charqueadas pelotenses a taxa de masculinidade encontrava-se em torno dos 87%. Em geral, os quilombos eram formados sobretudo por homens.

Quando do primeiro ataque registrado, o grupo quilombola da serra dos Tapes compunha-se de onze homens e apenas uma mulher. A mulata Rosa, do comendador Barcellos, seria uma decidida quilombola. Vestida de homem e carregando duas facas na cintura, participava ativamente dos ataque calhambolas. Segundo parece, ela não possuía um companheiro fixo. Rosa morreu, resistindo ao primeiro ataque reescravizador, em 16 de abril, junto com João, 'Juiz de Paz'.

Após o assalto à chácara de Jerônimo Lopes Garcia, os quilombolas prosseguiram numa quase incessante peregrinação pela serra. Sem jamais assentarem raízes em um local preciso, alternavam paradas - para descanso, geralmente em acampamentos já utilizados - com o assalto às residências da região. Nove moradias e duas senzalas foram roubadas e incendiadas e um número determinado de casas, rapinadas. As últimas residências assaltadas, antes do ataque policial de 16 de junho, pouco renderam aos quilombolas. Segundo parece, aterrorizados, os moradores haviam abandonado a região, levando o que podiam. Nos assaltos, além das preciosas crioulas e mulatas, os quilombolas obtiveram alimentos (farinha de mandioca, milho, feijão, etc.), vestimentas, fumo, pólvora, armas de fogo e objetos de valor (estribos e colheres chapeadas a prata).

A documentação em questão evidencia um fenômeno comum em outras regiões do Brasil: a promiscuidade entre os quilombolas e a população escravizada. Os seguidores de Manoel Padeiro obtinham informações dos escravos das casas assaltadas. Cativos participantes de ataques, sem em seguida acompanharem os quilombolas. Negros eram trazidos para o acampamento, onde passavam a noite dançando e comendo, para partir ao amanhecer. Porém nem sempre o apoio aos quilombolas era voluntário ou desinteressado. A documentação sugere uma realidade mais complexa. Entre quilombolas e trabalhadores escravizados existia uma identidade, social e cultural, de fato, que levava a que uns e outros dialogassem com singular facilidade e frequência, mesmo quando um cativo se opunha à fuga e ao aquilombamento como solução de seus problemas. Esses profundos laços punham também em contato, algumas vezes em forma contraditória, escravos e ex-escravos."

Fonte: MAESTRI, Mário. Pampa negro: quilombos no Rio Grande do Sul. In: REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 352-353.

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