domingo, 16 de agosto de 2020

O início da História e o surgimento da civilização

 


Costumeiramente, o marco simbólico daquilo que se convencionou em denominar “início da História” é a invenção da escrita – o que teria acontecido há cerca de 4 mil a.C. na Suméria, sul da Mesopotâmia. Só que a escrita é um indício de um processo dinâmico e complexo que já se desenrolava desde a Revolução Agrícola ou Neolítica (iniciada mais ou menos há 10 mil a.C.) que é o surgimento daquilo que iremos alcunhar como civilização. A escrita é um elemento dentro deste processo (elemento muito importante, sem dúvida!), mas não é o único. Junto à escrita, temos outros elementos centrais: o desenvolvimento das técnicas de irrigação aplicadas à agricultura, uma sociedade mais complexa do ponto de vista da divisão do trabalho e o surgimento do Estado.

            Se a Revolução Neolítica trouxe o gradual domínio do meio natural, com as primeiras lavouras e os primeiros rebanhos domesticados, trouxe também uma necessidade cada vez mais premente ao novo modo de vida sedentário: o acesso à água. As primeiras sociedades humanas mais complexas do ponto de vista de organização socioeconômica  são dependentes da água. Não por acaso, as quatro primevas que são o Egito Antigo, a Mesopotâmia, a civilização do Indo e a antiga chinesa estão intimamente vinculadas a grandes rios, em sua formação histórica. Não existiria o Egito sem o rio Nilo, na África, bem como a Mesopotâmia (“terra entre rios”) é relembrada pelas tamareiras às margens do Eufrates e do Tigre. Por sua vez, o rio Indo, na Ásia, nomeia a própria civilização, e o rio Amarelo fez surgir os primeiros assentamentos chineses regulares. Aproveitar esses recursos hídricos tornou-se fundamental. As primeiras cidades desenvolvem-se no sentido de terem água em abundância, com canais, aquedutos, diques, etc., que trazem a fertilidade aos campos de cereais e refresco aos animais e homens. Os rios ditam o cotidiano e impõem a obrigação de usar esse bem precioso de forma racional. Enchentes e períodos de estiagem precisam ser compreendidos. Desenvolve-se a matemática, a observação dos astros (astronomia) e das estações, a arquitetura, a engenharia, enfim, o saber não-braçal, a capacidade de abstração.

            Esse “saber não-braçal” é o gancho para descrevermos este outro processo: a sofisticação da divisão do trabalho. No Paleolítico, homens caçam, mulheres coletam; no Neolítico, homens pastoreiam, mulheres plantam; no alvorecer da civilização, já não existem mais essa divisão por gênero, mas por grupos sociais. A grande maioria é campesina, cuida das plantações e sentinela os rebanhos. Essa grande massa também serve como mão-de-obra gratuita para as grandes obras públicas como templos e canais. Um conjunto intermediário encarrega-se de funções um pouco mais especializadas: artesãos, ceramistas, metalúrgicos, comerciantes, escribas, militares, entre outros. E uma pequena elite é incumbida da tarefa de governar. Dentro desta lógica, a função de cada um é revestida de uma sacralidade, onde a sociedade é vista como um único organismo vivo e pulsante, em que “nada está fora do lugar”.

            As operações intricadas que o uso dos recursos hídricos exigia e a crescente especialização do trabalho resultam diretamente no estabelecimento do Estado – isto é, uma ordem social e jurídica reconhecida em que os esforços de toda uma comunidade são regulados e dirigidos dentro de um propósito. Em outras palavras, há uma autoridade central em que todos contribuem para seu poder e que, em alguns casos, pode usar a coerção (legal ou física) para reforçar sua própria autoridade. Cabe ao Estado gerir os recursos (grãos e metais) e redistribuí-los como lhe aprouver.

            Porém, o Estado na Antiguidade não surge numa perspectiva de contrato entre homens, em que todos renunciam à liberdade absoluta por um bem maior coletivo. O Estado antigo é uma teocracia, sobretudo.  Teocracias são regimes políticos em que não há diferenciação entre religião e política. Em resumo, a ordem mundana, dos seres humanos ordinários é mera continuidade da ordem divina. Contribuir para a desordem antes de ser crime, é pecado, é afronta aos deuses ou a um deus específico. No Egito Antigo, o faraó acumulava todas as funções políticas, militares e religiosas, não por ser o mais apto, o mais inteligente. Ele já tinha naturalmente essas qualidades porque antes de tudo era um “deus-vivo” encarnado e presente entre os mortais. Na Mesopotâmia, o patesi, o rei-sacerdote de cada cidade suméria, é representante da vontade dos deuses, com eles conversa e roga suas bençãos. Na China, os mais antigos imperadores eram considerados “filhos do Imperador de Jade” (a suprema entidade celestial).

            A escrita, por sua vez, documenta todas essas transformações, descreve no sentido de delimitar tempo e espaço dos acontecimentos. Muito embora, seu objetivo inicial não tenha sido mais que servir como instrumento contábil para registrar o quanto de trigo ou cevada cada camponês entregava aos templos, isto é, ao Estado.


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