domingo, 20 de outubro de 2024

Os antigos bailes e bochinchos do Rio Grande do Sul



Fernan Silva Valdez me fez recordar, com seus estudos folclóricos sôbre "Bailes e Bailongos" uma época da minha vida que ascende ao primeiro quartel deste século quando, menino ainda, comparecia aos bailes e bochinchos das solitárias campanhas de Itaqui. Os bailes realizavam-se nas fazendas, naqueles salões assoalhados, revestidos de cadeiras com assentos de palha e pernas torneadas colocadas ao correr das paredes; pequenas mesas de canto, em cada quadrante; enfeitadas de vasos antigos e de bisquits com figuras românticas do século XVIII e, às vêzes, flores de papel e cascas de ovos de avestruz pintadas e atravessadas por uma linha ou fita, pendentes das paredes. Nestas, ainda uma folhinha da casa comercial mais próxima e duas ou três reproduções fotográficas, a crayon, emolduradas em caixilhos de um mau gosto incrível.

À porta de entradas, abrigados pela meia fôlha aberta o gaiteiro, o violeiro e o italiano da rabeca. Do teto, pendente, um lampeão à gás e, às vêzes, outros, sôbre as cantoneiras altas.

Quando as donas de casa erram jovens e românticas, costumavam perfumar a sala queimando raminhos de alecrim.

A música obedeceu a dois ciclos, perfeitamente definidos. Nos primeiros tempos, por influência dos vizinhos do outro lado do Uruguai, dançava-se o pericon, de mistura com as quadrilhas e lanceiros. A chimarrita e a tirana eram referidas apenas pelos velhos avós. Depois, nos tempos a que me transponho, isto é, ao ano de 1920, dançavam-se a mazurca, a polca de relação, a habanera, o chotes e a valsas, todos de marcado cunho europeu.

O bochincho, tanto quando chamavam de meio-pêlo, contavam apenas com uma sala de rancho, de chão batido, poucos os bailes que os platinos colocavam cadeiras guenzas, de pau, bancos compridos e cêpos duros. Ao oitão, um candieiro, de flandres, de forma cônica, com um pavio de lã torcida. De baixo, sob a luz nervosa que projetava sombras inquietas nas paredes, o gaiteiro, de botas, de bombachas e chapéu tombado sôbre as costas, preso ao pescoço pelo barbicacho. Dançava-se arrastando os pés e, do chão, de terra batida, erguia-se a polvadeira que enruivava os cílios e as sobrancelhas. Quando as moças começavam a tossir, o bastoneiro, o mestre de sala, mandava parar a gaita e fazia a assistência sair para a noite aberta. Entrava a piona, com uma bacia de água e um raminho de guanxuma, salpicando o chão, tratando de não fazer barro. Depois, a festa recomaçava, mais animada. A canha, corrida no gargalo da garrafa, despertava o entusiasmo da gauchada, o mate passeava de mão em mão e, na roda das mulheres, o licor de araçá e potes de sequilhos, queijadas e pés-de-muleque.

Tanto nos bailes de categoria como nos bailes de meio-pêlo, e principalmente nos bochinchos onde as liberdades eram mais amplas, podiam ocorrer rivalidades amorosas que degenerassem em conflito. Os incidentes eram raros nos bailes das fazendas, para onde acorriam gente rica, autoridades distritais e comerciantes da região, cujas famílias chegavam em carretas, carretilhas e jardineiras. Mas nos bailes de meio-pêlo e nos bochinchos, nestes sobretudo, era raro que uma desconfiança ou um ciúme violento não terminassem em peleia. Em peleia, onde o candieiro voasse num tapa e a gaita fosse partida pelo meio, num habilíssimo golpe de facão.

Às vêzes, algum gaiato esparramava na sala de chão puro um punhado de pimenta do reino moída, que subia, de mistura com o pó, até os brônquios e pituitárias... E o resultado era sempre o mesmo das cenas de ciúme ou desconfiança: "quem atirou pimenta no baile?" acompanhado de um gesto de desafio, de chapéu tapeado para a nuca, e mão no cabo da adaga.

Lembro de um baile de meio-pêlo, realizado no Curuçu, região naqueles tempos, muito primitiva, nas campanhas de Itaqui. O rancho era de Siá Domingas, mulata de respeito que criava meia dúzia de filhas, que traziam inquietos os olhos e os corações de todos os gaúchos de, pelo menos meia légua de redondeza. Proximo, residia um tal Jacinto, castelhano pachola, casado com uma alemã côr de garopa - a Honoria, cabelo seco. O castelhano andava seduzido pela beleza de uma das filhas de Siá Domingas. E foi nessa noite de baile, que eu vi, na sala banhada por uma névoa pastosa e negra de picumã, o correntino atravessar a sala e convidar a chinoca de Siá Domingas para uma habanera arrastada e longa. A chinoca olhou para o chão, depois correu os olhos pela assistência, encontrou o olhar fuzilante da velha e negou-se a sair. O correntino não teve dúvidas:

- "No es la primera égua que me nega el estribo!"

E o rolo foi imediato. Ali, por perto, andava uma pretendente da chinoca, E os facões se cruzaram para resolver o agravo e decidir o premio... O castelhano Justino levou levou, pelo menos, cinco costuras na cara.

De outra feita, o baile seguia animado, polvorente, sala azul-negra de fumaça e picumã. Dançava-se, como sempre, de bombachas, de botas e de esporas. De repente, um gaúcho enroscou a roseta da chilena no babado de rendas da saia de sua chinoca. E um outro gritou - provocante e irônico:

"Pára o baile! que se mancou uma égua!"

A simples frase picaresca, dita por gosto e maldade, aumentou de mais um volume a pilha de autos criminais que no Juiz da Comarca levantava sôbre a escrivaninha da sua casa na cidade.

Os homens, nos bailes de categoria, usavam trajos da cidade. Nos comêços do século, levavam, em pessuelos, de léguas distantes, os croises e as sobre-casacas dos tempos imperiais. As mulheres, ostentavam, durante a noite, diversos vestidos, de variadas côres e feitios, cada qual com seus adereços apropriados, hábito que verifiquei estar ligado a uma tradição que Eduardo Dias acusou nas festas semelhantes de diversas regiões da Arábia.

Nos bailes de meio-pêlo e nos bochinchos, o gaúcho trajava sua vestimenta ordinária, e chiripá, nos tempos idos, e, depois a bombacha, botas, o chapéu de abas largas e as esporas choronas. As mulheres, o vestido de chita colorida. Dêsses bailes, nasciam os casamentos. E muitas vêzes, o baile começado ao cair da tarde, prolongava-se ao sair do sol do dia seguinte. Se a casa era rica, a sala era grande e os convivas de bôa cepa, recolhiam-se as moças para o interior da casa de largo espaço e os homens a sombra das figueiras e dos umbus, ou pelas tarimbas dos galpões e dormia-se a farta, pela manhã e a tarde e, ao cair da noite, o baile recomeçava. Fechavam-se as portas e as janelas, ao amanhecer, para que os convivas não fossem surpreendidos pela luz do sol. E os lampiões, na sala fechada, continuavam a dar a impressão de noite grande.

Depois, a festa terminava, deixando alguns casamentos apalavrados. As famílias retiravam-se nas suas carretilhas, jardineiras ou carretas e os moços guapos, no lombo de seus cavalos para um troteada de 10 ou 20 léguas, campo fóra...

Fonte: DIÁRIO DE NOTÍCIAS (Porto Alegre/RS), 20 de Setembro de 1955, 2o. Caderno, pág. 01; 04

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