quarta-feira, 16 de maio de 2018

As Sesmarias


"O sistema de sesmarias foi criado, em fins do século XIV em Portugal, com vistas a solucionar o problema de abastecimento do país, pondo fim à grave crise de gêneros alimentícios. O objetivo da legislação era o de não permitir que as terras permanecessem incultas, impondo a obrigatoriedade do aproveitamento do solo. Assim, 'Ocorrendo o inaproveitamento o dono do solo deve explorá-lo - diretamente, ou por prepostos - arrendá-lo, se não o puder cultivar, e, em caso contrário, tê-lo confiscado, para distribuição com quem o queira aproveitar'. A própria definição de sesmaria revelava a intenção do cultivo: 'são propriamente as datas de terras, casais ou pardieiros que foram ou são de alguns senhorios e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o não são'.

A história da implantação do instituto jurídico das sesmarias na colônia portuguesa foi objeto de estudos de importantes advogados, como Ruy Cirne Lima e Costa Porto. No esforço de compreender as características peculiares do sistema no Brasil, os pesquisadores ressaltaram que, aqui, a Coroa Portuguesa precisou estabelecer um sistema jurídico capaz de assegurar a própria colonização. O sistema de sesmarias em terras brasileiras teria se estabelecido não para resolver a questão do acesso a terra e de seu cultivo, mas para regularizar a própria colonização. Para tanto, o pedido de sesmaria era feito ao representante do poder central - capitão mor, capitão geral ou governador da província - identificando o nome do solicitante, o local e área desejada.

'O pedido recebia as informações do provedor da Fazenda Real no município de situação das terras, e do procurador da coroa, subindo assim instruído a despacho final. Deferido, lavrava-se na Secretaria de Estado a carta de sesmaria, como um título provisório, cabdno ao interessado suplicar ao rei, dentro em três anos, a carta de confirmação, que era o título definitivo (...) A concessão da carta da sesmaria, se fazia para que o concessionário usufruísse as terras como suas próprias, para ele e para todos os seus herdeiros, ascendentes e descendentes (...)'

As tentativas da Coroa em regularizar o sistema de sesmarias, principalmente a artir das últimas décadas do século XVII limitando, por exemplo, a extensão máxima das áreas a serem concedidas por sesmaria, foi em vão. As disposições acerca da obrigatoriedade do cultivo, um dos principais itens da Carta Régia de 1695, foram também inócuas. Da mesma forma, os esforços sobre a fixação dos limites, ou seja, a demarcação das datas concedidas também não pôde deter, à revelia da lei, o processo de expansão territorial praticado pelos fazendeiros e por uma ampla camada de posseiros.

(...)

Segundo Cirne Lima, o costume da posse preenchia alguns requisitos da Lei da Boa Razão, como a racionalidade - o cultivo - e a antiguidade. Além disso, o costume da posse encontrava precedentes na própria legislação portuguesa - o chamado direito do fogo morto - e na tradição romana. Todavia, ele feria o espírito das leis de Portugal, pois estas dispunham que as terras deveriam ser adquiridas unicamente por concessões de sesmarias. Para Cirne Lima, no entanto, 'a aquisição de terras devolutas pela posse com cultura efetiva se tornou verdadeiro costume jurídico'. Com isso o costume da posse passou a ter aceitação jurídica, consolidando a tendência de reconhecer, no texto da lei, a existência daquele que ocupava a terra, já que os vários decretos, resoluções e alvarás sobre as sesmarias não deixavam, de uma forma ou de outra, de salvaguardar o interesse daquele que efetivamente cultivava a terra.

Em 1821, a Coroa atendeu os pedidos feitos por vários posseiros de Pernambuco que solicitavam serem conservados em suas terras, pois haviam sido de lá expulsos em razão das sesmarias ali concedidas posteriormente. Para tanto, a Decisão referia-se a Ordens anteriormente promulgadas pela Coroa Portuguesa acerca do mesmo problema. Um ano depois, uma nova solicitação, desta vez de posseiros da Vila São João do Príncipe, levou uma nova Decisão, de 14 de março de 1822, reafirmando o direito dos posseiros mais antigos sobre as terras que fossem dadas posteriormente por sesmarias. Finalmente, em 17 de julho de 1822, durante a regência de D. Pedro e em meio a uma conjuntura extremamente complexa, suspendeu-se à concessão de sesmarias.

No entanto, para se compreender as questões que envolvem o reconhecimento do direito à posse em sua relação com o sesmeiro (detentor de um documento) é preciso relacionar o emaranhado processo de concessão de sesmaria e o jogo de interpretações sobre o direito a terra em fins do século XVIII que virão a sustentar as interpretações 'nacionais' ao longo dos oitocentos, após o fim da concessão. Para tanto, realizei o levantamento e análise de processos de embargo e despejo presentes no Museu da Justiça do Rio de Janeiro relativos à região de Maricá e os processos que chegaram à Corte da Apelação do Rio de Janeiro ao longo dos oitocentos, também relativos à região. Se - como afirmamos - as cartas de sesmarias são entendidas como ponto zero da ocupação dos litigantes, é preciso compreender a fundo o encaminhamento do processo de concessão até a portaria final que legaliza a forma de ocupação e as legislações pertinentes que procuraram redefinir e reorganizar o instituto de sesmarias no Brasil.

Assim, para o que nos interessa os documentos oriundos da concessão de sesmarias imprimiam uma definição fluida sobre os limites territoriais, posto que toda legislação no sentido de delimitar e demarcar as terras concedidas continuaram a ser letra-morta, mesmo após o fim do sistema em 1822. Neste sentido, após essa data, eram poucas as terras de sesmarias que haviam passado por algum procedimento de medição e demarcação. Como já afirmei em trabalho anterior, isso revelava a perpetuação do poder dos terratenentes, donos de sesmarias anteriormente concedidas. As indefinições dos limites permitiam que sesmeiros se transformassem de fato em grandes posseiros, ocupando terras devolutas ou - em áreas de conflitos - invadindo terras de outrem.

De qualquer forma, o simples fato de possuir em suas mãos um documento de sesmarias trazia vantagens incomensuráveis ao litigante, autor de um processo envolvendo pequenos posseiros. A carta, ao revelar a dimensão simbólica de seus poder, tornava-se a expressão da verdade que se queria imprimir. Em muitas ocasiões, os advogados dos réus, esforçavam-se por demonstrar que a sesmaria estava em comisso, que a extensão territorial alegada não estava de acordo com as informações presentes na carta e que a primazia do cultivo dos posseiros deveria assegurar o seu direito a posse, a despeito da existência de um documento de sesmarias do autor. Em longos processos (alguns com mais de 500 páginas) advogados buscavam fundamentar sua contrariedade frente à utilização do documento de sesmaria pela outra parte do litígio, baseando-se em toda a legislação que - como vimos - impunha a delimitação e demarcação de terras.

No entanto, o emaranhado da legislação acerca daquela concessão não havia conseguido impor a obrigatoriedade de delimitar e demarcar a terra. Os limites continuaram fluidos, as delimitações territoriais mantiveram-se vagas e operadas pelo sesmeiro a partir de seus interesses pelas áreas fronteiriças. Não à toa, quando acompanhamos os processos que envolvem disputas de terras no oitocentos, encontramos reiteradamente a noção de que a concessão de sesmaria configura o 'marco zero' da ocupação do local de litígio, em contraste com as alegações de que aquelas terras haviam sido ocupadas por sistema de posse, reconhecido a partir da lei da Boa Razão."

Fonte: MOTA, Márcia Maria Menendes. Sesmarias e o mito da primeira ocupação. 2003, p. 05-08.




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