A NOITE DE NATAL
RIO DE JANEIRO
Foram-se quasi os tempos em que a religião tinha n'esta terra encantos ineffaveis, e suas festas os enlevos que douram os horisontes sombrios da vida.
Oh! porque arrancar dos que crêm as suas crenças hereditarias! Porque destruir o thesouro das superstições, quando ellas nos confortam o animo e nos transportam a esperança!
Despertados do sentimento individual e da imaginação, ellas planam distantes das contigencias terrenas, embora não se asylem no mais remontado dos céos.
E, quantas vezes não nos recordamos d'esse passado que nos correu descuidoso! d'essas tradições que venerámos em dias melhores, e cuja lembrança conservamos até a morte!
A noite de Natal no Rio de Janeiro, entra no quadro das felicidades extinctas d'este povo, liberto ainda dos presentimentos amargos que ora o entristecem.
Era a festa das crianças e das mãis; dos venturosos da sorte e do escravo, que já tinha quem lhe recolhesse as lagrimas afflictas e os gemidos sem éco na tréva das senzalas.
A familia, preparada para os jubilos da igreja, associava-se pela abstracção ás venturas da Virgem Mãi, no estabulo de Bethlem, quando, embalando o seu recem-nascido, recebia as oblações dos pastores em tropa que acudiam das aldeias visinhas.
N'esta capital e nos suburbios as festas do Natal eram amplas e caracteristicas. E que nem sonhavamos de pedir ao estrangeiro - no paíz das florestas - a tola e rachitica arvore do Natal, para symbolisar as galas de que se revestira a natureza no nascimento d'Aquelle que vinha em nome de Deus.
O contentamento reinava por toda a parte: ricos presentes destinavam-se com prodigalidade; os escravos, de roupa nova, cumpriam alegres tarefas; os presepes armados, as casas illuminadas no interior, os móveis bem espanados, os vestidos de seda estendidos sobre as camas, annunciavam a proxima festança, que começava logo ao escurecer.
A missa do gallo punha em revolução casas inteiras; velhas, moças, meninos e rapazes, ninguem dormia, ninguem se occupava com outra cousa qualquer.
Certa parte da população, porém, preferia armar o throno do Menino, passar a noitada entre cantigas e dansas, visitar o presepe do Barros.
Nas freguezias e nos conventos as pompas religiosas que iriam ter logar, faziam sahir fóra dos habitos regulares as comunidades, os vigarios, o pessoal subalterno do culto. As capellas, com uma escadaria de velas de cera, deviam projectar grande luz no ambiente do altar-mór, todo enfeitado e acceso, em que era de rigor collocar-se o Deus-Menino, deitado e nusinho, em um leito de ouro e de pedras finas...
E uma orchestra de repiques de sinos retinia nos ares feridos pelos gritos das multidões em grupos, que imitavam nas ruas, o canto do gallo, a voz dos animaes, que, segundo a lenda, exhultaram do prazer com o nascimento do Messias.
A noite de Natal, que o era tambem de liberdade e de innocentes prazeres, teve no Rio de Janeiro uma caracteristica firme, de que conservem memoria personagens authenticos.
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A partir das 8 horas de hoje, quando as estrellas erguiam nas alturas as suas lampadas de diamantes, um rumor vago, indefinido e ás vezes harmonioso, circulava na cidade. Grupos precedidos por tocadores de violão e cantadores de modinhas seguiam á aventura, isolando-se em pontos variados o som de uma frauta que fazia a parte cantante, de um cavaquinho estridente, de uma guitarra afinada e de plangentes arpejos...
Ao longo das ruas, debruçadas ás janellas abertas das rotulas, muitas pessoas avistavam-se, de espaço a espaço, apreciando as dansas em casa das familias da classe proletaria, ou palmejando no fim dos lundús e modinhas cantados aqui e além, pelo pardo Anselmo, o Alves, o Cunha, o Juca Cégo, o Dr. Clarimundo, o Leandro, o crioulo Trovador, o Zé Menino e trinta outros menestreis populares.
Nos intervallos, os convidados iam para dentro, geralmente aos pares, os cavalheiros trocando amabilidades com as suas damas, ageitando a luva de pellica, rindo dos incidentes de uma quadrilha.
Lá, a grande ceia estava preparada; e no momento dado o corredor atravancava-se, esvasiando-se de todo, logo que cada um tomava assento ás mesas extensas e por vezes emendadas.
Na maxima totalidade, as reuniões em casas terreas eram entre gente de casta, isto é, de homens e mulheres de côr, comparecendo um ou outro portuguez, personagem infallivel nos dias risonhos ou nefastos dos brazileiros em quaesquer condições.
E os hurrahs ferviam, as saudes trocavam-se, e o pardo ou o crioulo que presidia a mesa, notava-se de fóra, encasacado e de pé, orando, gesticulando, levantando o braço e suspendendo acima da fronte a taça espumante do champagne.
N'isso, os magotes de povo, os escravos, que obtinham licença para divertir-se sulcavam os caminhos, amotinados, imitando o cacarejar do capão do terreiro, o canto prolongado do gallo musico.
Na rua de Matacavallos, a capella do Menino-Deus agremiava innumeras familias que, desde as Ave-Maria, a frequentavam.
Emquanto, já por cerca das dez ou onze horas, essas scenas se passavam, levas de gente seguiam pelo largo do Rocio, em direitura á rua dos Ciganos, que se ostentava brilhante, atravessada por cordas enfiadas de bandeiras, illuminada, coberta de folhas e de flores, e animada pela musica marcial que tocava em um coreto.
Gyrandolas amiudadas subiam ao ar, e o povo, com chapéus e bengalas, desviava as flechas que sibilavam cahindo.
Na rua dos Ciganos, onde são hoje os sobrados de ns. 34 e 36, tinha a sua grande marcenaria o velho portuguez Francisco José de Barros, marcenaria que occupava as cinco portas de sua vasta casa abarracada.
Nas proximidades do Natal, o estabelecimento desapparecia, por isso que o presepe instalava-se na metade anterior da officina.
Durante trinta annos o velho Barros armava o seu tradicional presepe, que attrahia toda a cidade e suburbios.
O espaçoso salão, para o qual entrava-se por uma unica porta lateral, era decorado sem elegancias, mas com originalidade; dos tectos viam-se anjinhos pendurados de barriga para baixo, a um lado uma especie de tribuna em que cantavam as filhas do proprietario os versos de Natal e Reis; o logar destinado á orchestra conhecia-se por uma pequena estante de pinho, sobre a qual havia papeis de musica e velas accesas de carnaúba em rasos castiçaes de folha de Flandres.
O presepe que formava o fundo, de um lado a outro, e que subia até o tecto, era constituido por peças que se desarticulavam, á vontade, sendo as figuras, as casas, os repuchos, as fortalezas, a historia toda, feita pelo Barros, o exclusivo santeiro, marceneiro, pintor e architecto do seu presepe de variadissimas quinquilharias.
Dizem que o motivo que levara o bom do velho a festejar com a lapinha o nascimento do Deus-Menino, fôra um voto, uma promessa.
Até ahi não se remontaram as nossas pesquizas.
Mas, quanto esplendor! quanto talento de artista aproveitado n'aquella obra que pasmava as crianças, entretinha devotamente a população inteira, causava assombro aos entendidos no assumpto!
Nas noites de Natal, Reis e Anno Bom a rua dos Ciganos não podia ser mais bella. As pompas exteriores, reproduziam-se, as meninas cantavam, a musica tocava, e n'essas noites e aos domingos o presepe ficava exposto ao publico, das 6 horas á meia noite.
E quem não se lembra do Barros! d'aquelle velho baixo e cheio de corpo, claro e rosado, de cabello á escovinha e completamente branco, de barba rapada e sem gravata, que, vestido de brim alvo e engommado, obsequiava a todos com a mesma meiguice, com o mesmo sorriso feliz e innocente!...
E aquelle operario obscuro tinha um ideal; aquelle portuguez de outros tempos amava a este paiz e ás suas instituições!
Á excepção das noite em que o seu presepe só recebia a visita de escolhidas familias e do publico, as demais elle reservava a um beneficio, cujo producto entrava para a caixa da Imperial Sociedade Auxiliadora das Artes Mecanicas e Liberaes, á qual legara por sua morte um valioso predio.
Na vespera de Reis os ranchos iam cantar n'aquelle presepe as suas cantatas, diante do Menino, deitado em um berço de palhas, junto á Santa Virgem e S. José acercado de pastores e dos reis Magos, vindos do Oriente.
E o povo atopetava a rua dos Ciganos, e duas phrases se escutavam soltas, aqui, além, mais longe: - ...Missa do gallo e presepe do Barros.
Subindo as escadas tapetadas dos ricos e nobres, alguma cousa de elevado dominava de boa altura: o throno do Senhor-Menino nos deslumbrantes salões.
Junto a elle as mãis vinham implorar a saude para seu filho a morrer: uma irmã pedia á criança nascida a guia de uma estrella para seu irmão em viagem; o escravo, ajoelhado, implorava ao Libertador dos captivos o dia da liberdade.
Á mediana social, entretanto, estava reservada a maior castidade, sob o ponto de vista religioso, dos costumes primitivos. O pequeno presepe da sala maravilhava a familia; os visinhos e os amigos achavam-se presentes; a escravatura, contente de sua sorte, aguardava na porta da rua ou no corredor os seus senhores, para acompanhal-os á igreja.
E um repique de sinos formava um concerto aereo como um côro de anjos, annunciando a missa da meia-noite...
As sedas farfalhavam ao leve passo das moças bonitas; o Menino-Deus, em sua peanha, com seu cajadinho de ouro, prendendo um cordeirinho que pastava no monticulo, avultava de um movel de jacarandá; e as crianças, as senhoras, as moças, as crias, promptas para a igreja, [ilegível]
Esse velho era um pai ou um avô, a quem a religião emprestara n'aquelle instante a saude perdida e o vigor dos dias antigos.
E partiam...
Os alaridos acordavam os échos, as aves nocturnas libravam-se ás tontas, tangidas das torres, as familias desfilavam com o seu cortejo de negrinhas e moleques; os adros dos conventos, das parochias, dos sumptuosos templos como o Carmo, S. Francisco de Paula, Candelaria e Sacramento ficavam compactos de fieis, de devotos das missas cantadas.
Na Capella Imperial, apenas batia meia-noite, a multidão quasi que não se podia mecher no corpo da igreja; os musicos appareciam no côro, afinavam os instrumentos; as sentinellas, postadas em determinados logares, descansavam a espingarda, cujas bayonetas espelhavam aos jorros da luz.
Então, as ondas do povo afastavam-se á direita e á esquerda, offerecendo passagem ao santo bispo que ia officiar a missa. Vestido de capa de um tecido de ouro, vergado pelos annos, com a fronte coroada de mitra, sustendo o baculo, o principe da igreja caminhava lento, precedido de monsenhores e conegos, de thuriferarios e acolytos, de sacerdotes e diaconos, de cyrios accesos e cantando sagrados canticos.
E a missa do Natal celebrava-se magestosa, porque nascera o Senhor, que "seria chamado o Admiravel".
Nas diversas igrejas, não obstante serem as pompas liturgicas menos grandiosas, não deixava de ser subido o piedoso fervor.
Em outro tempo, quanta autonomia em nossos costumes! quanta alegria intima não ia no coração d'este povo que confiava nos seus destinos!
Mas o Rio de Janeiro, como quasi todo o Brazil, tem esquecido as suas tradições e os seus costumes. A festiva noite do Natal já não é o que foi; as festas nacionaes são ridiculas a olhos estranhos; nós nos temos desfeito do nosso passado, como de um objecto inutil.
- Cuidado, barqueiro!
Não vês aquelle ponto negro no horizonte? É um prenuncio de tempestade.
Ainda é tempo, fujamos!...
MELLO MORAES FILHO.
Fonte: GAZETA DE NOTICIAS (Rio de Janeiro/RJ), 24 de Dezembro de 1887, pág. 01, col. 07-08, pág. 02, col. 01