sábado, 13 de outubro de 2018

Pelotas: a fama & o carnaval


"Pelotas, RS: um carnaval de onze dias, aproveitando a fama da cidade

Francisco Alves da Fonseca, economista, professor universitário, prefeito de Pelotas (154949 habitantes), está chateado.

Outro dia, ele estava assistindo, na televisão, a uma entrevista do costureiro Evandro de Castro Lima, o campeão dos concursos de fantasias do Municipal do Rio. E o Evandro disse que tinha nascido em Pelotas.

- Bueno, che. O Evandro é baiano. Será que ele pensa que está promovendo Pelotas, dizendo que é daqui?

Numa reunião num Ministério, no Rio, um carioca perguntou a ele como ia a BR-24.

- Eu percebi tudo, che, mas me fiz de bobo. Perguntei que estrada era essa. Ele respondeu: rodovia Campinas-Pelotas. Vê só, che, que triste fama tem a nossa cidade e a outra, lá de São Paulo.

Ele me explica a razão dessa fama triste de Pelotas:

- É que Pelotas era a terra da charqueada. Enquanto o estancieiro trabalhava o ano todo, criando boi, o charqueador trabalhava só quatro meses por ano para cortar, salgar, secar a carne ao sol e vendê-la. Com isso, ganhava muito mais que o estancieiro.

E o que fazia o charqueador, com todo esse dinheiro, no resto do ano?

- Ia passear em Paris, e trazia de lá hábitos, linguagem e estilo de vida requintados. Isso irritava o gaúcho da campanha, mas ele respeitava o pelotense, porque o pelotense tinha dinheiro. O Banco de Pelotas foi sempre mais forte que o Banco do Estado do Rio Grande do Sul, até 1930, quando faliu.

Aí tudo mudou:

- Ninguém respeita um sujeito sem dinheiro que anda de punhos de renda e tem fala sofisticada. Vem daí a triste fama do pelotense.

Mais do que o prefeito, a gente de Pelotas vive preocupada com essa fama. Há poucos dias, um grupo de rapazes perseguiu até o limite da cidade um ônibus de turistas uruguaios que insistiam em brincar com a masculinidade do pelotense. Todos os vidros do ônibus foram quebrados.

Outros, porém, conformam-se. E às vezes o conformismo chega a ser grotesco:

- Doce ou pelotense?

É o garçom do Estoril, perguntando se quero sobremesa. Percebo que a autogozação é uma tentativa de me agradar.

Finjo não entender. Ele completa:

- O senhor quer doce ou fruta?

Quando saio, passa um ônibus de turistas. Enquanto os homens gritam um palavrão para cada pelotense, as moças cantam a musiquinha do Sílvio César: 'Machão, machão, mas quando chega o carnaval ele vai de baiana pro Municipal'.

No carnaval de Pelotas - que dura onze dias, e é uma festa realmente popular, animadíssima - parece que todos resolvem gozar a fama da cidade. Em cada rua se vê um dos chamados 'blocos dos sujos'. Os homens estão vestidos de mulher e armados de panelas, latas e alguns instrumentos musicais, saem pela cidade, durante os onze dias - da quinta-feira anterior ao carnaval até o domingo depois da quarta-feira de cinzas. Gozam tudo e todos, e também o carnaval oficial: enquanto as escolas desfilam na rua 15 de Novembro, organizadas, com alas e divisões, cantando belos sambas-enredo, os sujos percorrem as ruas laterais, tocando e cantando, aos berros, coisas como Atirei o Pau no Gato, Carneirinho, Carneirão e Boêmio Demodé.

Como o carnaval dos sujos é muito mais divertido a eles cantam o que todo mundo conhece, seus blocos, que saem com vinte ou trinta pessoas, acabam liderando nas ruas, carnavais paralelos de que participam, às vezes, mais de mil.

No ano passado, acabou uma das últimas tradições da Pelotas sofisticada de quarenta anos atrás: as pompas fúnebres. Embora as funerárias ainda se chamem 'Emprezas de Pompas Fúnebres', a última delas recolheu as carruagens, vendeu os cavalos brancos e guardou os imensos penachos que eram colocados na cabeça dos animais durante os cortejos fúnebres.

- Tivemos que nos modernizar - conta Roberto Ribeiro, dono da empresa funerária e um dos organizadores do carnaval de rua.

Mais uma prova de que Pelotas se moderniza:

Estacionei o carro na rua 15 e fui tomar um lanche no bar Taperinha. Regina, morena, dezoito anos, estudante secundária, olhos vivos, baixinha, inteligente, bonita, vê a placa do carro, e vem falar comigo. Pergunta para onde vou. Conto que vou a Bajé e Chuí e ela me pede carona até Santa Vitória do Palmar. Conversamos. Uma de suas histórias:

- Sempre que posso, me arranco daqui. Mas meu irmão sempre me acha. Minha bala é um inferno, minha coroa vive me chamando de vagabunda, meu irmão é outro careta, brigam comigo sempre que fico até mais tarde com meu garotinho. Tens um crivo aí?

Prometo a carona que não vou ter coragem de dar. E ele se despede com um beijo. Na boca."

Fonte: REALIDADE (SP), edição 74, ano 1972, pág. 171-172.
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