Outro exemplo tem sotaque carioca. É muito provável que ela nem sequer tenha existido, mas sua biografia junta sofrimentos bem reais das pessoas escravizadas. Em 1968, uma exposição na Igreja do Rosário comemorava os oitenta anos da Abolição. Uma das gravuras expostas, de autoria de Étienne Victor Arago, mostrava uma mulher usando uma Máscara de Flandres. A ilustração incensou o imaginário popular. Ao se fundir a crenças anteriores, o culto a Anastácia, a escrava torturada da imagem, espalhou-se como rastilho de pólvora. Dizia-se que ela era uma mulher linda, abusada pelo dono do engenho. Estoicamente, resistiu aos abusos, ao que foi punida com diversos castigos corporais como a famigerada máscara. Boa como poucas pessoas, ajudou a curar o filho do dono da fazenda quando ele foi acometido por uma rara doença. Teria morrido pouco depois com o rosto todo deformado. Nada disso tem base empírica, mas é fácil entender como a história mescla muitas coisas potencialmente reais, como as violências da escravidão, e muitos anseios populares, como cura, proteção e perdão.
O culto a Anastácia se intensificou nos anos 1980 e saiu da sua base original nas comunidades de negros pobres, atingindo parte de uma classe média branca. Tornou-se popular entre enfermeiras e prisioneiros. Símbolo de esforço pela harmonia racial. A umbanda a incorporou plenamente: tornou-se "a Santa", entidade milagreira. A Igreja negou sua existência em 1987 e mandou que se retirassem as imagens de Anastácia de todo recinto católico. Nada adiantou. Santuários já funcionavam por toda a cidade e continuam com movimento.
Fonte: KARNAL, Leandro. Santos fortes: raízes do Sagrado no Brasil. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017, pág. 126. [recurso eletrônico]