Antes de começar a desenrolar o acontecido, vale avisar que os nomes usados na história são fictícios, porém os locais, profissões e procedências são verossímeis. É bom destacar isso pois a trama fala dos relacionamentos modernos e da forma surpreendente como eles podem acontecer e ser encarados. Vamos ao fato.
Anita, técnica em enfermagem, e Pedro, funcionário de uma revenda de automóveis, estavam casados há dois anos e, finalmente, após passarem um certo tempo pagando um aluguel caro de um apartamento na zona central de Pelotas, conseguiram alugar uma casa com um preço bem mais módico no bairro Fragata, na mesma cidade. A casa foi um achado, pois embora modesta, era uma boa moradia de alvenaria, cercada na frente e com pátio nos fundos. Ficava numa das ruas perpendiculares à Avenida Duque de Caxias, não muito distante da mesma, o que lhes facilitava o acesso ao ônibus para irem trabalhar. A vizinhança relativamente tranquila, formada por outros trabalhadores assalariados e alguns aposentados e prestadores de serviços. Para completar, logo nos primeiros dias da "casa nova", Anita descobriu que uma das suas vizinhas era Ana Lúcia - uma antiga colega sua da época do curso técnico. Ana Lúcia, por sua vez, a recebeu muito bem na vizinhança e logo se tornaram muito próximas, mais próximas até do que fora na época dos estudos.
Ana Lúcia tinha um esposo - Reinaldo, que era caminhoneiro e trabalhava fazendo transporte de cargas em viagens curtas por toda a região. Não tardou para que os dois casais, relativamente jovens e ainda sem filhos, formassem uma forte parceria e estreitassem muito os laços de convivência. Contribuía para isso, o fato de Ana Lúcia ser procedente de Santa Vitória do Palmar e, exceptuando o marido e a amiga Anita, não ter muitas referências de amizade na cidade de Pelotas.
Os meses passaram e os casais faziam churrasco juntos aos domingos, Pedro e Reinaldo jogavam numa quadra de futebol ali perto como bons amigos, e Anita e Ana Lúcia trocavam figurinhas sobre a profissão em comum. Até num Natal em que a família de Anita veio passar com a filha, Reinaldo e Ana Lúcia estavam presentes como convidados íntimos. Tudo ia muito bem.
Foi então que Reinaldo recebeu uma proposta para começar a transportar cargas para lugares mais distantes, mas com possibilidades de ganhos melhores. Começou a conduzir em direção a Bagé, Porto Alegre, Serra e até Santa Catarina. Por isso, Reinaldo passou a passar um, dois, três, até cinco dias fora. Ia com o baú do caminhão cheio de uma mercadoria e voltava com o baú cheio também de outra mercadoria. Os contatos entre os dois casais passaram a ser menos frequentes, com meros cumprimentos ocasionais e conversas dispersas. Ana Lúcia passou a chegar mais tarde igualmente do trabalho, ao que parece, devido a novos horários que tinha que cumprir.
Anita estranhou primeiramente um certo distanciamento de Ana Lúcia, mas considerou que a nova rotina do casal poderia estar os extenuando e permaneceu discreta, preocupada com sua própria vida. Só que numa bendita noite de inverno, já por volta de umas onze horas da noite, enquanto limpava rapidamente a varandinha da frente de casa, devido a uma recente chuva, observou um rapaz loiro saindo da casa da vizinha e se colocando para subir numa moto estacionada por ali. O rapaz voltou rapidamente para a casa da vizinha e voltou com um capacete, preparando-se para partir. Anita não pensou nenhuma maldade no momento, mas ficou intrigada com o homem, pois ponderava para si que poderia ser um parente de Ana Lúcia o qual ela desconhecia. Isso se deu justamente numa noite em que Reinaldo estava "fazendo viagem", isto é, fora de Pelotas transportando alguma carga. Anita comentou o ocorrido com o marido, mas não deu prosseguimento à questão e nem se atreveu a perguntar à vizinha posteriormente quem era o homem.
Só que o fato passou a se repetir naquele inverno. O próprio Pedro ao chegar do trabalho (às vezes um pouco mais tarde da noite) observava a tal moto estacionada na frente da casa da vizinha. E sempre em dias que Reinaldo estava viajando. A desconfiança de Pedro e Anita tomou força. Mas pensavam: vai que é um parente? Vale a pena perguntar e meter o bedelho? E se Ana Lúcia fica ofendida? Por isso mesmo, retraíram-se, embora constatassem Reinaldo uma tarde ou outra em casa, dando um aparente ar de normalidade à vida do casal. Lógico, o detalhe fora do contexto é que o tal rapaz da moto em nenhum momento era visto na casa dos vizinhos quando Reinaldo estava. Na verdade, nunca.
Anita tentou se reaproximar de Ana Lúcia, embora a conversa das duas não passassem de meras trivialidades. Ana Lúcia alegava cansaço do trabalho e, um dos costumes que tinha, que era convidar Anita para tomar um chimarrão em sua casa, praticamente desapareceu. Anita não quis então forçar mais nada. Deixou quieto como está.
O ano estava quase findando e num domingo qualquer sucedeu-se porém um fato derradeiro para as desconfianças de Anita e Pedro. Anita tinha uma cachorrinha branca que tinha por costume, logo de manhã cedo, pedir para sair da cozinha em direção ao pátio dos fundos para fazer suas necessidades. A cadelinha ia em direção ao pátio, cheirava as plantas, corria um pouquinho, fazia suas necessidades e voltava novamente à cozinha, onde se deitava num tapetinho especialmente destinado a ela. Quem sempre abria a porta da cozinha era Anita e, naquele dia, ainda de roupão e sonolenta, esperou o bichinho fazer o que tinha que fazer, e se pôs a esquentar água para fazer um café, enquanto procurava no armário um saco de pães que havia comprado no dia anterior. Entre uma coisa e outra, Anita mirou pela janela basculante da cozinha uma movimentação incomum no pátio da vizinha e tomou um baque. Era Ana Lúcia muito bem vestida (o que denotava ter passado a noite fora) abraçada com o rapaz loiro de quem desconfiava ser seu amante. Os dois não estavam nem aí ao fato de que pudessem estar sendo flagrados (na verdade, no momento mesmo não sabiam disso) e seguiam em beijos apaixonados, com Ana Lúcia provavelmente ainda sob o efeito de alguma bebida alcoólica, exprimindo interjeições aleatórias e chulas. De fato, era a prova final de que Anita esperava para concluir a traição da vizinha.
O marido levantou um pouco mais tarde e Anita não perdeu tempo de lhe contar todos os pormenores do flagrante. Conversaram e não sabiam o que iam fazer. Não queriam se meter, mais tinham pena de Reinaldo, pois enquanto trabalhava arduamente na estrada, a mulher lhe colocava um belo "par de chifres" em casa. Pedro ainda confirmou que falara com Reinaldo na sexta-feira à tarde e o mesmo havia lhe dito que iria "puxar uma carga" para o Paraná e, na volta, ainda teria que passar no porto de Itajaí, em Santa Catarina, sendo, por isso mesmo, uma viagem de alguns dias. Que tremenda safadeza! - exclamava Anita. Ficara com repulsa daquela que outrora considerava sua amiga.
Os dias se passaram e Anita e Pedro resolveram agir. Pedro tomaria a iniciativa. Reinaldo chegou de viagem e avisou ao vizinho que teria uns três dias de folga em casa, até a próxima empreitada. Pedro convidou o amigo para sair, esparecer. Foram até a quadra de futebol que normalmente jogavam em outros tempos, mas não para jogar, ao contrário, sentaram no bar anexo do lugar e pediram uma cerveja. Pedro conversava com muita delicadeza, tentando chegar ao ponto com o amigo, usando voltas e mais voltas nas palavras. Em dado momento, foi direto ao ponto: relatou ao amigo tudo o que tinham observado nos últimos meses, das desconfianças e da peremptória cena que Anita presenciou numa manhã de domingo. A reação de Reinaldo estarreceu Pedro:
- Eu sei disso, Pedro. Sei disso há pelo menos uns quatro meses.
- Tu sabes, então?! E agora, amigo? Vais te separar da Ana Lúcia? Estás esperando o quê? - indagou um surpreso Pedro.
- Na verdade, não. Pode ficar como está.
- Como assim? Vais ficar como corno e ainda por cima manso da história? Olha o que essa mulher está fazendo contigo, enquanto passas na estrada dando duro, ela traz um macho para a casa. Rapaz! A situação é absurda!
- Pedro, quando soube que a Ana Lúcia estava dando umas escapadas, eu também já tinha dado as minhas. Pensamos logo em nos separar, mas daí consideramos o seguinte: se nos separarmos, a Ana Lúcia não tem condições de se sustentar sozinha em Pelotas, terá que voltar para Santa Vitória, para a casa da mãe. Lá o emprego é mais difícil para ela. Além disso, teríamos que nos desfazer da casa, dos móveis, de tudo montado há anos. Eu não sei me virar sozinho, nem tenho tempo para isso agora, preciso de uma mulher que me lave as roupas, resolva as pendências do dia-a-dia para mim e deixe uma casa limpa e arrumada para quando eu chego cansado das viagens.
- Amigo, estou estupefato. E vocês vão ficar assim? Não fica mal para ti as pessoas observarem tua mulher, ou sei lá o quê tu consideras ela agora, se exibindo com um homem por aí? Cara, que situação! - dizia Pedro.
- Olha, só vou pedir para ela ser mais discreta das próximas vezes. Não vou te mentir, não. Nosso casamento há muito tempo é fachada. Mas, como te disse, para nós é pior a separação agora. Temos mais proveito dividindo o mesmo lar. Vou te dar um exemplo: entre aluguel, água, gás e luz, nosso orçamento é consumido em torno de 20%, um quinto e olhe lá. Se nos separamos, lógico que eu vou gastar menos por causa das viagens, mas não encontro uma casa boa por um preço que não me consuma quase metade do meu ordenado. Com a merreca que a Ana Lúcia recebe como técnica de enfermagem, ela sequer sobreviveria direito.
- Ué, mas não teria como o magrão que está com ela assumi-la? Passa a bucha para outro, irmão!
- Não, não. É só pegação, mesmo. Além disso, o tal rapaz tem ajudado ela em casa e é menos gasto para mim. Chego em casa e tem pacote de arroz, feijão e bolacha, etc. no armário, de coisas que não comprei e sei que ela também não comprou. Inclusive, até roupa e calçado ela ganhou de presente do sujeito. Mais economia ainda!
Pedro encerrou a questão por ali mesmo. Era uma reação inesperada, a qual ele mesmo não estava preparado para lidar. Foi conversar com o amigo muito receoso que acabasse aquela noite tendo que impedir que o mesmo fizesse uma loucura, mas voltou para casa confuso. Conversou com a esposa, que também ficou de boca aberta com a história toda.
Ana Lúcia ficou sabendo da intervenção dos vizinhos e cortou totalmente relações com Anita e Pedro. Não se cumprimentavam mais. Passados dois anos, a coabitação (já não era realmente um casamento) de Ana Lúcia e Reinaldo chegou ao fim. Ao que parece, o próprio Reinaldo iria morar em Porto Alegre. Segundo alguns, tanto foi por ele ter recebido lá uma proposta de emprego ainda melhor, quanto por ter arrumado uma nova companheira por ali mesmo. Ana Lúcia, então sumiu mesmo. Para Santa Vitória não retornou, mas não se sabe de seu paradeiro. Uma outra vizinha dizia que ela estaria morando com um sujeito muito suspeito perto da Balsa, mas ninguém podia confirmar.
Realmente, o que ocorrera era um exemplo mais palpável dos tais "relacionamentos modernos". Só que pesa o seguinte fato: será que Reinaldo fez o papel de corno manso ou foi esperto em explorar a situação da melhor maneira possível? Fica de acordo com a interpretação de cada um. O fato é que com a economia que fez naquele dois anos e meio, trabalhando muito na estrada e praticamente não tendo muito gasto em casa, conseguiu realizar o seu tão almejado sonho: dar a entrada no financiamento de um caminhão Constellation semi-novo - veículo que lhe ampliava as possibilidades profissionais.
Vai saber, não é mesmo?