segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A Laguna dos Patos por Hermann von Ihering


"É conhecido que a Província do Rio Grande do Sul possui os maiores lagos brasileiros na Lagoa dos Patos e na Lagoa Mirim, que se comunicam. Há muito pretendia submeter estas lagoas a um estudo pormenorizado, principalmente, a respeito de sua fauna, pois, pelo que sei, isto ainda não foi feito e tive oportunidade de fazê-lo no ano de 1884, quando me alojei na cidade de Rio Grande, e tinha vivido durante época em Pedras Brancas, no Guaíba, em frente de Pôrto Alegre, e pude estudar o afluente principal da Lagoa dos Patos, o majestoso Rio Guaíba e que lá tem caráter de lago e, muitas vêzes, é chamado de Lagoa de Viamão. Apesar de, como já disse, minhas pesquisas visarem, principalmente, fins faunísticos, resultou também tão interessante em sentido geográfico e, até agora, desconhecido que os seguintes comentários me parecem justificados.

Os dados gerais a respeito da posição, extensão e afluentes dêstes lagos podem ser obtidos, fácilmente, em algum compêndio geográfico, como por exemplo, Wappaeus: Manual do Brasil. Por conseguinte abstenho-me de repetir êstes dados conhecidos e relatarei em traços gerais, sómente, os aspectos mais importantes. Em sentido hidrográfico, a Província do Rio Grande do Sul se divide em duas regiões: uma ocidental e a outra oriental, se não considerarmos alguns rios menores que deságuam diretamente no mar. A região ocidental é representada pelo Rio Uruguai; a oriental por ambas as lagoas e seus afluentes. A Lagoa Mirim é a menor, o que já indica seu nome (mirim=pequeno) e não recebe rios consideráveis. O mais importante dêstes é o Rio Jaguarão, navegável para embarcações de pequeno porte até a cidade do mesmo nome. Esta lagoa está em comunicação com a Lagoa dos Patos por meio de um canal semelhante a um rio, o São Gonçalo, cuja parte inicial é denominada de Sangradouro. A Lagoa dos Patos recebe em sua margem ocidental, as águas que descem da Serra dos Tapes e da Serra do Herval e, entre os rios o Camaquã é o mais forte; e continua, a partir da Ponta de Itapoã, no Rio Guaíba, o qual, por sua vez, é formado pela confluência dos rios Jacuí, Caí, dos Sinos e Gravataí. Tôda a quantidade de água se junta na Lagoa dos Patos, que está em comunicação com o Oceano, sómente, através de uma saída curta e estreita, o Canal do Norte.

Êste, inicialmente, era considerado rio e, por isso, a cidade recebeu o nome de Rio Grande. Os bancos de areia que se encontram na desembocadura dêste canal, formam a mal afamada Barra do Rio Grande. (...)

A Lagoa dos Patos não deve seu nome, como muitas vêzes parece, aos patos grandes (Cairina moschata L.) que são muito raros e não ocorrem absolutamente, perto de Rio Grande, mas, aos índios da Tribo dos Patos que, antigamente, moravam nesta região. (...)

(...)

O Canal do Norte constitui um raro fenômeno por ser a única saída para o despêjo de massa total de água duma área enorme, sem no entanto possuir correnteza constante. Isto se pode compreender sómente, lembrando-se que o nível da Lagoa não difere, ou difere muito pouco do nível do oceano e que as correntezas, por conseguinte, são únicamente, expressão de equilíbrio de diferenças de nível, causadas pelo vento. Esta influencia do vento não se constata sómente na Lagoa dos Patos, mas também no Guaíba onde observei êste fato na desembocadura do Rio Passo Fundo, perto de Pedras Brancas. Lá tirei muitas vêzes do solo lodoso as grandes conchas que permaneceram ao recuar rápido da água em lugares onde no dia anterior, a água tinha ainda profundidade de 20 até 30 cm. Na desembocadura do Rio São Lourenço, na Lagoa dos Patos, a influência do vento exercida sôbre a altura do nível da água também é tão grande que a possibilidade de passagem da barra é determinada essencialmente pela direção do vento. A Barra é rasa e o Rio São Lourenço é navegável sómente por 2 ou 3km. Quando passei a Barra recentemente, de veleiro, vindo de Rio Grande, a profundidade do canal de navegação estava apenas a 4 palmos. Esta podia ainda ser superada, arrastando-se o navio pela âncora através do banco de areia. No dia seguinte, com a profundidade de 3 ou 3 e meio palmos isto não mais seria possível. Pelo fato que, neste ponto, não ocorre sedimentação forte, correnteza, etc., seria fácil aprofundar um canal de navegação por dragagem e que, provávelmente, se conservaria durante muitos anos. Atualmente, o Govêrno pretende mandar fazer êste trabalho útil com draga.

(...)

Compreende-se que tais transformações não podem deixar de influir na vida faunística da lagoa. Não existe regra geral sôbre a relação dos animais aquáticos para com a composição química da água; geralmente os animais, habituados a determinada composição da água, toleram dificilmente alterações consideráveis da mesma. Nunca se pode manter, em sua maioria, vivas: mães-d'água, estrêlas-do-mar, etc.; na mesma água doce dos carangueijos, caracóis, conchas, etc perecem rápidamente, transportados à água do mar. Outros animais toleram alterações mais ou menos acentuadas de salinidade, tais como certos peixes do mar, que descem nos rios, ou seja os que vivem nos estuários. Segundo Moebius, chamam-se 'eurialinos' os animais que toleram consideráveis oscilações da salinidade, e 'estenoalinos', aquêles que pouco toleram estas oscilações. Mas, deve ficar constatato que as variações constante dentro de tôda a escala da água doce até à água marinha de quase 4%, são toleradas por poucos animais, com exceção de alguns peixes. Por conseguinte, não é milagre, que a fauna do estuário de Rio Grande seja tão extraordináriamente pobre. Crustáceos maiores ocorrem únicamente: Helice granulata, uma espécie de Lupe e Palaemon brasiliensis, regularmente, em maior número; no verão, ocorre ademais Penaeus brasiliensis Latr., o saboroso camarão. Tôda a fauna de moluscos é reduzida a duas conchas - Solecurtus platensis e Corbula (Azara) labiata - e um caracol ínfimo, Hidrobia australis.

Os últimos se encontram em milhões. As margens das baías mais rasas em volta de Rio Grande são revestidas por espessas massas de Confervales, Ulva e uma espécie de Zostera marítima. Nesta massa de plantas ocorre, freqüentemente, a Hydrobia; ademais, se encontram alguns crustáceos menores, uma Bryozoa e algumas Infusoria e grandes colônias de Epistylis. Não ocorrem vermes, lesmas, nem se fala de Echinoderma, naturalmente.

O número de peixes é limitado apesar de certas espécies ocorrerem em tais quantidades que a pesca é fonte de renda considerável da população. Jenynsia lineata e Girardinus decemmaculatus se encontram em tôda a parte e em grandes quantidades; mais raro, Cyprinodontae. De peixes maiores e comestíveis se encontram os seguintes, durante todo o ano e não dependem diretamente, ou pelo menos em menor grau, de salinidade: Lobotes auctorum Gthr., chamadao Breixereive; Pogonias chromis L., chamado Miraguaia; Pogonias fasciatus Lac., chamado de Burriquete; Umbrina sp. (martinicensis C.V.), chamado Papa Terra; Sciaena aduata Ag., chamada Corvina e Cascudo; Ancylodon jaculidens C.V., chamada Pescadinha; Atherinichthys C.V., chamada Peixe-rei; Mugil lizza C.V., chamada Tainha; Pseudorhombus vorax (?), chamado Linguado; Arius Commersonii Lac., chamado Bagre; Clupea aurea Ag., chamado Javelha.

São êstes os peixes mais freqüentemente representados no mercado de Rio Grande e que aparecem quase diáriamente em enormes quantidades, principalmente os maiores (Cascudo ou Corvina). Outros, como Bagres, escasseiam no verão, pois nessa estação permanecem na Lagoa dos Patos ou no Guaíba. Corvina, Tainha, Peixe-rei e Linguado são, provávelmente, os peixes melhor adaptados à vida no Canal. Outros, por exemplo a gigantesca Miraguaia, vivem sómente nas proximidades da Barra e apenas entram mais quando a água do mar se introduz e penetra duradoura e profundamente. Esta Miraguaia é idêntica ao Trommler da costa oriental da América do Norte, peixe comercialmente muito apreciado por lá e cuja propagação até a América do Sul, talvez com exceção da própriamente tropical é tão pouco conhecida como a dos Lobotes, tão apreciados. Peixes menos freqüentes são os que entram sómente no auge do verão com a água marinha, parcialmente são espécies mais conhecidas, provenientes do Rio de Janeiro ou outros lugares da costa brasileira, parcialmente também vivem na desembocadura do Rio de La Plata.

Ao todo encontram-se, entre as 40 espécies de peixes do Rio Grande, 10, isto é, cêrca de 25%, que também ocorrem no estuário La Plata. Com conhecimentos mais pormenorizados dos peixes, esta cifra certamente ainda se elevará, pois, a fauna do estuário La Plata ainda não foi estudada, tão pormenorizadamente, como a fauna de Rio Grande. Para a última, as minhas verificações, que relatarei mais detalhadamente noutro lugar, podem ser consideradas completas, pois as demais espécies não por mim observadas, são peixes marinhos que sómente entram ocasionalmente, no verão, enquanto os habitantes permanentes do estuário em traços gerais, é mais conhecida que a fauna de peixes dos rios que desembocam na Lagoa.

A Tartaruga aparece, às vêzes, a Thalassochelys caretta (Linn.) no mercado, onde é vendida muito cara como iguaria (cêrca de 25-30 marcos). Na água salobre vive, ademais Platemys Hilarii L.B., que recebi também procedente do Rio Jaguarão, enquanto nos afluentes ocidentais da Lagoa dos Patos se encontra Hydromedusa Maximilianii Fitz. Os mamíferos do estuário do Rio Grande são sómente dois tipos de golfinhos, Stenodelphia Blainvillei e que parece precisar de água do mar, e um golfinho muito grande provávelmente Delphinus cymodoce Gray, que não pude captar; sómente seu crânio me serviu de indicação.


Enquanto a fauna própria do estuário de Rio Grande pode ser denominada escassa, devido às condições desfavoráveis a qualquer vida animal, a riqueza e variação das aves que alegram o aspecto da paisagem formam um contraste agradável. O número de espécies de patos, galinholas, andorinhas-do-mar, gaivotas, etc. observadas é, de fato, muito grande. Não podemos tratas mais extensamente dêste assunto, mas também devemos ressaltar que entre estas aves constam as duas espécies sul-americanas de cisnes, Cygnus nigricollis, chamado Pato harminho e Cygnus coscoroba, chamado Capororoca. Mais estranhas nesta fauna variada são algumas aves das quais não se sabia, até então, que se encontram na costa brasileira, porque seu 'habitat' é a região ártica; é o pingüim do grupo Spheniscus. Depois de grande tormenta encontrei um exemplar na costa, já morto, mas sei de vários casos, em que êstes foram capturados com vida. Da mesma maneira obtive dos pescadores o Podiceps dominicus Lath., pêgo na rêde, enquanto o mergulhão (Pediceps bicornis Licht.), se pode obter sómente por tiro certeiro, porque, quase sempre, desaparece a cabeça no momento em que se movimenta o gatilho. Chamou-me a atenção que o Phalacroccorax brasilianus (chamado Biguá) não recusa a água salobre como campo de caça.

Em comparação com a escassês do resto da fauna do estuário de Rio Grande a classe de peixes é relativamente bem representada, pois, durante um ano de coleta captei cêrca de 50 espécies. Desta cifra devem ser subtraídos sómente os peixes de água doce, que durante as enchentes, são freqüentemente carregados pela água até Rio Grande, respectivamente, ao mar. Que, de fato, as enchentes são as responsáveis, se conclui das quantidades de plantas, únicamente ocorrentes na água doce, principalmente, Pontederiaceas, o água-pé dos brasileiros, e que flutuam várias vêzes, através do Canal. Um dia fiquei especialmente admirado pela ocorrência de um Pimelodus sapo entre os peixes do mercado. As pesquisa levaram ao resultado que imediatamente antes o Rio São Gonçalo aumentou considerávelmente seu volume por causa das fortes chuvas. No que êstes peixes, durante a vazante, se encontram em água predominantemente doce, são encontrados em estado normal; chegando à água salgada, ficam tontos rápidamente e podem ser capturados fácilmente; mais tarde, pérecem e flutuam mar adentro, ou são lançados à praia. Encontrei, uma vez na praia do Canal, perto de São José do Norte, um Macrodon trahira e soube depois que, freqüentemente, peixes de água doce são lançados à praia.

O que ocorre aqui isoladamente, ocorre em grande escala na Lagoa dos Patos, quando no auge do verão, a água marinha se introduz na Lagoa. Então os peixes da água doce ficam tontos e são coletados em massa pelos barcos. Mas, inúmeros perecem e infestam o mar. Aparentemente os peixes não compreendem de que direção vem a água marinha para poder fugir desta. Assim a natureza aniquila cruelmente, com um golpe, tôda a fauna existente, periódicamente, no que esta não consiste de formas eurialinas. É esta a razão, por que a fauna da Lagoa dos Patos é tão pobre na região média como no Rio Grande. No farol Cristóvão Pereira, na baía de Mostardas, encontram-se únicamente as duas espécies mencionadas de moluscos Corbula e Hydrobia, escassez que contrasta estranhamente com a rica fauna de moluscos do Guaíba, na qual existem numerosas espécies de Anodonta, Unio, Leila, Cyrena, Ampullaria, Chilina, Hydrobia e outras. De carangueijos decápodos encontram-se ainda algumas espécies no Guaíba, também observadas no Rio Grande. Fiquei muito surprêso em encontrar algumas carapaças de Corbula, ornadas de Balanus vivos. Êstes se encontram só excepcionalmente na água doce. Por conseguinte, também em sentido zoológico se observa um contraste nítido entre o Guaíba, que revela em sua fauna, o caráter de seus afluentes e da Lagoa dos Patos. Relação semelhante ocorre entre a Lagoa Mirim e o Rio Jaguarão. Corbula labiata, falta no último, assinala também o caráter peculiar do lago, enquanto se encontram no Rio Jaguarão espécies de Planorbis, Physa e outras, que não ocorrem na Lagoa Mirim pelo menos, em sua metade norte, pois desconheço a outra. Assim, como a água marinha ocasiona o perecimento dos peixes do rio, inversamente, a repentina predominância da água doce pode ser fatal para os peixes marinhos. As miraguaias são especialmente sensíveis neste sentido. Quando estas, na Barra ou na terminação do Canal, se encontram repentinamente na água doce, devido á forte vazante, o efeito é o mesmo anteriormente relatado, com relação aos peixes de água doce.

(...)

A costa da Província é rasa e arenosa; não oferece lugares protegidos aos navegantes, principalmente perto de Rio Grande, razão pela qual não existe pesca regular na costa e os pescadores raras vêzes se aventuram a sair ao mar com suas embarcações frágeis e nunca vão a longa distância da barra. Pratica-se a pesca, especialmente no Canal do Norte até a Barra do Rio Grande, assim como nas baías vizinhas da Lagoa, como por exemplo no Saco da Mangueira, sendo que sempre trabalham vários pescadores em conjunto. Para as espécies mais freqüentes de peixe têm diferentes tipos de rêdes. Recentemente a Câmara Municipal decretou que, na região principal de reprodução, sómente se permite a pesca com rêde de malhas largas. Uma exceção disso é a rêde do camarão, a mais fina de tôdas, mas geralmente só usada na praia, em lugares arenosos e arrastam na terra. As rêdes são fabricadas pelos próprios pescadores, em parte de cânhamo russo (foi da Rússia), outras de fibras nacionais, especialmente tucum - de uma palmeira baixa e espinhosa (Astrocarium vulgaris). Esta ocorre também no Rio Grande, onde antigamente forneceu aos índios a fibra para as cordas de seus arcos, mas atualmente não é mais aproveitada e o tucum, empregado pelos pescadores, vem de Pernambuco. Ademais se empregam na fabricação das rêdes as fibras das fôlhas da Pita,
uma Bromeliácea grande que é freqüente na região norte da costa de Rio Grande. Os pescadores nas povoações pequenas da costa norte da Província, como Tramandaí, Cidreira e outras, como também os pescadores de Santa Catarina, usam para a confecção de rêdes a Pita. As rêdes têm seu nome pela espécie de peixe para a qual são destinadas, por exemplo, rêde de tainha, rêde de cascudo. É interessante que os pescadores já podem julgar de antemão o que quererão e poderão pegar. Em certos casos, por exemplo, nas tainhas, que ocorrem em grandes quantidades em maio, isto se orienta pela estação do ano. A época de pesca de Bagre e Miraguaia é o inverno.

(...)

Rio Grande, 20 de janeiro de 1885."

Fonte: Relatório originalmente publicado no periódico Deutsche Geographische Blätter, vol. VIII, fascículo 2, Bremen, Alemanha, 1885, pp. 164-203 sob o título "Die Lagoa dos Patos".

A tradução para o português foi feita por Luise H.G. Körner e reproduzida na revista "Organon"



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