"Terri Schiavo, uma italiana com uma lesão cerebral irreversível, foi cuidada e alimentada por quinze anos por seus familiares, até seu marido obter na Justiça o direito de desligar os aparelhos que a mantinham viva. Esse nível de solidariedade entre membros de uma espécie animal só existe entre os Homo sapiens. Se Terri pertencesse a qualquer outra espécie, teria sido abandonada a seu destino. Apesar de conhecermos exemplos de solidariedade entre animais, em nenhum caso ele é tão evidente quanto nas sociedades humanas. Mas quando, em nossa história, surgiu essa característica? Um crânio de quase 2 milhões de anos fornece uma pista importante.
O crânio e a respectiva mandíbula pertencem a um animal do gênero Homo, um ancestral recente do homem, e foram descobertos na região de Dmanisi, atual República da Geórgia, na Eurásia. O local de onde ele foi desenterrado contém outros ossos de animais, indicando que nosso amigo pertencia a uma comunidade de caçadores que processavam a carcaça das presas e provavelmente se alimentavam da carne. O que chamou a atenção é que tanto o crânio quanto a mandíbula não possuem dentes. Só esse achado não seria inusitado, pois os dentes muitas vezes são separados dos ossos após a morte. O que realmente faz do achado uma descoberta única é que tanto os buracos onde se encaixam os dentes quanto as regiões da mandíbula e da maxila que os sustentam foram completamente reabsorvidos e remodelados, um fenômeno bem conhecido e que ocorre de forma lenta durante os anos que se seguem à perda dos dentes. Dada a extensão do remodelamento e levando em conta o que se conhece desse processo nos primatas modernos, os cientistas concluíram que nosso amigo ficou sem os dentes muitos anos antes de morrer. E na verdade nem perdeu todos; um dos caninos desapareceu um pouco antes de sua morte, pois tanto o buraco quanto o osso ao redor do dente estão preservados, o que descarta que ele tenha nascido sem dentes.
Apesar de serem bastante comuns crânios onde faltam dentes, é extremamente raro encontrar fósseis ou crânios de carnívoros, ou até de hominídeos, que tenham sobrevivido à perda total dos dentes. A razão é simples: quando perdem parte dos dentes e deixam de ser capazes de se alimentar, esses animais morrem depressa, muito antes de a arcada dentária se remodelar. Provavelmente o único local onde se podem achar crânios com perda total de dentes e uma reabsorção óssea extensa é nos cemitérios modernos. Mas nesse caso, junto ao crânio, serão encontradas peças de plástico e cerâmica, as conhecidas dentaduras.
Esse achado demonstra que nosso amigo viveu durante anos ou talvez décadas sem dentes e que, mesmo pertencendo a uma comunidade de caçadores, sobreviveu. Como teria se alimentado? Será que seus companheiros deixavam tutano dos ossos ou o fígado dos animais para ele chupar? Que mecanismos sociais garantiam sua alimentação?
Qualquer que seja a explicação, ela envolve algum grau de solidariedade entre aquele grupo de caçadores, um grau de solidariedade muito maior que o encontrado hoje em qualquer espécie de primata. A solidariedade parece ter surgido em nossos ancestrais há mais de 2 milhões de anos."
Fonte: REINACH, Fernando. A longa marcha dos grilos canibais e outras crônicas sobre a vida no planeta Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pág. 244-245.