domingo, 28 de fevereiro de 2021

A Revolta do Vintém



"A Revolta do Vintém

Sérgio Arnad Costa

Há um século, em dezembro de 1879 e janeiro de 1880, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro uma revolta popular que, oriunda do descontentamento com as novas medidas econômicas adotadas pelo Gabinete Sinimbu, ficou conhecida como a 'Revolta do Vintém'.

O então ocupante da Pasta das Finanças, Afonso Celso de Assis Figueiredo, ex-ministro da Marinha do Gabinete Zacarias e futuro visconde de Ouro Preto, preocupado com a situação financeira do império, começou a procurar meios para melhorar a arrecadação nacional.

Por meio de decretos e regulamentos, iniciou Afonso Celso um processo de elevação de impostos como o imposto do selo, o imposto sobre o fumo, imposto sobre vencimentos, foros e laudêmios, cobrança de armazenagem, etc.

A cada nova medida, os contribuintes iam-se mostrando irritados e a imprensa republicana, a cada dia que passava, acirrava suas críticas ao governo. Veja-se, por exemplo, a que aparecia, a 12/12/1879, em A Província de São Paulo: ' como cousa mais odiosa, dentre os feitos de desastrada situação actual é difícil estabelecer preferência entre o enxerto chinez, a restauração da guarda nacional e o exagerado e monstruoso argumento de impostos'.

O último dos tributos, e que foi a gota d'água para a impopularidade do Gabinete Sinimbi, veio com o decreto no. 7.565, de 13 de dezembro de 1879, logo apelidado pelo povo de 'Imposto do Vintém', que regulamentava a arrecadação da taxa sobre transportes.

Ficou estabelecido que, a partir de 1o. de janeiro de 1880, seriam cobrados vinte réis - 1 vintém, como era chamada a pequena moeda de cobre, com a efígie do imperador e a inscrição aforística: 'Vintém poupado, vintém ganho' - a mais em cada passagem de bonde.

Um vintém a mais no preço das passagens quase nada significava para as pessoas que transitavam de bonde. Mas a ilegalidade do estabelecimento do tributo e a pressão despótica com que foi atirado ao público é que geraram a indignação da população.

A imprensa antimonarquista hostilizava-o de todas as formas. O ministro da Fazenda passou a ser chamado de Afonso Vintém e Afonso Xenxém. O folhetinista da Gazeta imaginava as seguintes reflexões feitas pelo governo como razão e fundamento para decretação do imposto sobre a passagem de bonde: 'então, seu Zé Povinho, vos mecê também já tem luxos, hem? Anda de bond, meu animal, como quem tem renda fácil, como quem é ministro ou Souza Carvalho? Pedaço de patife, espera lá, que eu vou arranjar um negócio contigo. Tu és o anonymo, que eu excluo por incapaz do meu voto e do meu jury, porque tu não sabes lêr, nem nasceste meu parente. Não tens direito'. '(...)'. 'Não ter direito, pois seu Zé, não quer dizer não ter deveres; vossê é diante de mim o mesmo que o negro é diante do seu senhor: eu sou o governo, vossê é o Zé Povinho. Venha para cá um vintém para pagar-me o desaforo de andar de bond! Vamos, para cá o vintém!'

O novo tributo foi tenazmente combatido tanto pela imprensa conservadora como pela republicana, com exceção do Jornal do Comércio que procurava, através de suas páginas, defendê-lo. Entre todas as folhas oposicionistas, a que mais se destacava pelas críticas ao 'Imposto do Vintém' era a Gazeta da Noite, dirigida pelo tribuno popular, jornalista e agitador republicano Lopes Trovão, que declarava em editorial, ser 'justo que o povo apelasse para todos os meios, e até mesmo para a violência, que é também um direito do povo quando exercido contra as violências do poder'. Em outro editorial afirmava peremptoriamente: 'Só por meio de uma revolução o povo conseguirá chamar o poder ao cumprimento dos seus deveres'.

Lopes Trovão não se limitou a escrever artigos contra o 'imposto'. Saiu para as ruas, realizando comícios e instigando a população a não pagar o novo tributo.

No dia 21 de dezembro organizou uma conferência de protesto no teatro do Ginásio, à qual compareceu também José do Patrocínio, que durante aproximadamente meia hora fez violentas críticas ao novo tributo e à escravidão. Ao encerrar seu discurso foi entusiasticamente aplaudido pela platéia que gritava: 'Abaixo o ministério! Morra Afonso Vintém! Abaixo a monarquia! Viva a república!'

No final do ato, foi formada uma comissão para protestar contra o 'Imposto do Vintém' e foi marcado um novo comício, para o dia 28 de dezembro, no Campo de São Cristóvão. 'Depois da conferência do dr. Lopes Trovão, o povo acompanhou o orador em passeata pelas ruas, sendo felicitadas na passagem as redações da Gazeta da Noite, Gazeta de Notícias e Cruzeiro.

As companhias de bonde, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos, receavam a cobrança do 'Imposto do Vintém'. A Revista Ilustrada ironizava-as: 'As companhias de bond não assentaram ainda no meio de cobrar o vintém. A de S. Cristóvão quer dois policiaes que prendam cada passageiro recalcitrante. Como, porém, os policiaes tomam lugar nos carros, o governo destacará um piquete de cavalaria atraz de cada bond. Os passageiros vão ter honras imperiaes'.

O governo, percebendo o vulto do movimento contra o novo tributo, começou a tomar providências para impedir as agitações. A Gazeta de Notícias comentava: 'Consta-nos que o sr. dr. chefe de polícia mandou hontem chamar à sua repartição os emprezarios dos diversos theatros da côrte e pediu-lhes que, ao menos durante certo tempo, não cedessem as suas casas para conferências ou reuniões'. Referindo-se, ainda, a tal medida, concluía que, 'o acto de s. exc. é justificado e é uma prova da iniquidade do imposto que a população da côrte vae pagar'.

Apesar da população estar proibida de realizar reuniões ou comícios nos teatros, houve no dia 28 de dezembro, no Campo de São Cristóvão, a anunciada manifestação com o comparecimento expressivo de aproximadamente 7 mil pessoas. Logo após o comício, o povo dirigiu-se ao Paço da Quinta da Boa Vista, para entregar um manifesto de protesto ao imperador, em que era pedida a revogação do regulamento do 'Imposto do Vintém'. A entrega não foi possível, pois os manifestantes foram barrados no caminho pela polícia, que os ameaçou com a cavalaria. Impossibilitados de dirigirem-se diretamente ao imperador, nomearam uma comissão, que entregou o ofício com a seguinte introdução: 'Augusto e Imperial Senhor Dom Pedro II - A comissão encarregada de dirigir-se a V.M. para protestar contra o regulamento que impõe ao passageiro de bonde o tributo de vinte réis, não devendo tornar aos vossos paços, resolveu enviar-vos a petição junta, em que a iniquidade, a ilegalidade e o vexame daquele imposto ficam à saciedade postos em evidência. A petição é a mesma que foi assinada por sete mil cidadãos que acorreram ao 'meeting'. Enviando-a a V.M., a comissão explica o seu procedimento pelo fato de representar o povo num pleito em que a sua e a nossa dignidade foi desrespeitada pela força policial, no momento justamente de exercermos esse direito que nos era garantido pela Constituição Nacional, base e princípios da legislação vigorante. Fomos repelidos, Imperial Senhor. Assim, cumpre a V.M. vir ao encontro do povo, pronunciando-se favoravelmente sôbre uma petição em que o povo representa a justiça e o vosso govêrno o capricho. A ordem das nações depende sempre da combinação dos governantes com a vontade dos governados. O assunto que nos preocupa já deve estar suficientemente estudado por V.M., porque há seguramente quinze dias que ele é o tema obrigado dos artigos da imprensa e das conversações da praça pública. A comissão espera, portanto, que vos pronuncieis até amanhã pelo 'Diário Oficial', para aliviar-se do seu pesado encargo, amanhã mesmo, no largo do Paço da cidade. É um rigorosíssimo dever que sôbre nós pesa e do qual havemos de desempenhar-nos em público, mesmo porque em público é que nos cumpre lavar as mãos no credo dos sucessos lastimáveis que V.M poderá conjurar, desprezando o ferrenho capricho do govêrno para harmonizar-se com a justa vontade do povo. Os compatriotas de V.M. - Dr. Lopes Trovão, Dr. Ferro Cardoso, Joaquim Pedro da Costa'. O imperador nada respondeu.

Em 31 de dezembro, Lopes Trovão pelas colunas da Gazeta da Noite instigava a população a não pagar o 'Imposto do Vintém', mostrando os meios com que cada um poderia resistir ao novo tributo: 'O Zé Povinho felizmente tem consciência da sua força e sabe quais são os meios de que lançar mão para fugir ao pagamento: - Recusando-se todos ao pagamento e sujeitando-se à prisão. Para onde levará o governo tanta gente, sem forças para contê-la e continuar as prisões? E, uma vez presos, não será fácil arrombar as portas? A ilegalidade da prisão justifica a ilegalidade do arrombamento e da fuga. Outro meio: - Recusem-se todos ao pagamento do Imposto e, se os obrigarem tão-somente a apear-se do bonde, pedirem a restituição da importância da passagem. Tomarem logo o primeiro bonde que passar e proceder da mesma maneira. E assim percorrerão gratuitamente a extensão que quiserem. Também podem lançar mão de outro meio, se a polícia do sr. Afonso Vintém quiser tirar-nos o vintém à força de espada: é arrancarem os trilhos em cem, duzentos ou mil pontos da cidade'.

Chegando o dia de Ano-Novo, houve, como estava anunciado, uma reunião no largo do Paço, à que assistiram cerca de cinco mil pessoas. Lopes Trovão tomando a palavra congratulou-se com o povo pela sua atitude e disse que, 'não tendo havido resposta do imperador à representação que lhe foi dirigida, elle não se animava a aconselhar o procedimento que deveriam ter os cidadãos presentes'.

Concluído o discurso, dissolveu-se o comício e o povo seguiu em massa pela rua Primeiro de Março, onde de uma das sacadas de um hotel falou o alferes honorário Frederico Severo: 'Nesta hora em que troa o canhão militar saudando a realeza, troa também o canhão popular, para defender os direitos do povo'.

Os manifestantes seguiram pela rua do Ouvidor, levantando aplausos em frente às redações dos jornais O Cruzeiro, Gazeta de Notícias e Gazeta da Noite. Chegando à rua Uruguayana, a massa popular havia aumentado de forma expressiva, entrincheirando-se nesta rua e no largo de São Francisco, onde estavam localizados os bondes da Companhia Vila Isabel. Postava-se ali grande quantidade de policiais à paisana, munidos de grossas bengalas. Um grupo desses agentes tentou dispersar a multidão que, aos gritos de 'fora o vintém', começou a virar bondes e a arrancar os trilhos, com auxílio de picaretas e alavancas, da rua Uruguayana e do largo de São Francisco. Novas forças policiais chegaram, utilizando-se de cassetetes para conter os populares que passaram a reagir com pedras do calçamento. O coronel Enéias Galvão, futuro barão do Rio Apa, por ter sido atingido por uma das pedradas, deu ordem de fogo. Dos disparos resultaram, segundo o noticiário, cerca de dez mortos e muitos feridos.

Apesar de todo o aparato policial, o povo não se dispersou e continuaram as manifestações hostis ao 'Imposto do Vintém'. Quando chegou um esquadrão do '1o. Regimento de Cavalaria, alguns populares invadiram a casa Coelho & Martins na rua Uruguayana para obter grandes sacos de rolhas, que foram atirados à rua fazendo com que os cavalos escorregassem.

O movimento se estendeu a vários locais da cidade. Nas ruas Senador Pompeu, Conceição, Alfândega, Primeiro de Março, Sete de Setembro, Arcos e outras foram também arrancados os trilhos e virados diversos bondes. A única companhia que não sofreu danos foi a Botanical Garden, pois ela mesma se propusera a pagar o imposto.

Segundo o jornal A Província de São Paulo, de 4/01/1880, 'esse movimento durou até aproximadamente à meia-noite, hora em que o público foi-se retirando bem como as tropas'. Os hospitais civis e militares estavam lotados, e só no 1o. Distrito havia cerca de setenta detidos. Encerrava-se assim a 'Revolta do Vintém'.

A 6 de janeiro, em correspondência à condessa do Barral, escreveu D. Pedro II: 'eu só não admito populaça em ar de ameaça, como sucedeu no domingo atrasado'. Mas, temendo novos distúrbios, o imperador foi obrigado a revogar o decreto que estabelecia o 'Imposto do Vintém'.

A vitória popular precipitou a queda do gabinete Sinimbu, substituído, em 28 de março, pelo Ministério do Conselheiro José Antonio Saraiva. Deu oportunidade também para que os republicanos ampliassem a propaganda contra a monarquia e em favor da instituição do novo regime, que seria proclamado nove anos depois da 'Revolta do Vintém', pequena moeda de cobre que, hoje, como muito bem lembrou Luís Martins em saborosa crônica, é 'apenas preciosa raridade numismática'."

Fonte: O ESTADO DE SÃO PAULO (São Paulo/SP), Suplemento Cultural, 27 de Abril de 1980, pág. 13-14.
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