Nota nossa: biografia de um real e últimos carrascos da História do Brasil.
Era um homem jovial, o verdadeiro typo d'esses bons tropeiros dos sertões de Minas, que á noite, nos pousos, divertem os camaradas rasgando uma chorada chula, na viola, emquanto ao longe pasta a boiada.
Quem não conhecesse a terrivel historia d'aquelle homem, ao vel-o risonho, de bentinhos e patuás no petio, sempre a fallar em Deus e Nossa Senhora, estaria longe de julgar que era elle o celebre carrasco, terror da provincia de Minas Geraes.
O crime não deixara n'aquelle rosto as estrias do remorso. O sangue que elle derramava por conta da injustiça não lhe produzia no espirito impressão alguma.
Fizera-se carrasco como quem se faz sapateiro. Enforcar um homem, era para elle como se deitasse umas tombas.
Usava de uma phrase especial para dizer que havia justiçado um criminoso:
- Mandei-o embora.
A vida para elle era cousa somenos. E se o quizessem vêr alegre, era dizer-lhe que se preparasse para ir enforcar um réu.
Nas vesperas da execução mostrava-se Fortunato de uma expansibilidade extraordinaria. Ria, fallava comsigo mesmo, gesticulava, e punha-se até a cantarolar.
Para o criminoso a quem tinha de mandar embora, era elle de uma ternura quasi paternal. Tinha então extremos de delicadeza, e, fallando-lhe, uma doçura verdadeiramente feminil, na voz.
No momento, porém, em que deitava a corda ao pescoço do miseravel, dilatavam-se-lhe os olhos e brincava-lhe no rosto uma alegria feroz.
Os gestos eram então sacudidos e nervosos. Rapido como um relampago, cumpria o seu degradante e infame dever, recuperando logo depois a calma e a tranquilidade de um justo.
Dormia aquelle homem como póde dormir quem nunca teve um mau pensamento, nem praticou uma acção indigna. Tinha amor ao officio, e exercia-o com prazer.
Era um typo digno de estudo, o carrasco Fortunato; e, graças á obsequiosidade de pessoa que o conheceu, podemos hoje offerecer aos leitores alguns dados sobre a vida d'esse sinistro personagem, que figurou em tantas tragedias judiciarias.
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Fortunato nascera em 1811, em Lavras, na provincia de Minas Geraes. Era filho de Jeronymo e Engracia, escravos, como elle, de Antonio Carlos Garcia.
Era negro e tinhas bastos bigodes. As barbas, em carapinha, emmolduravam-lhe o rosto cheio e arredondado. O olhar era vivo e scintillante. As orelhas apresentavam tamanho fóra do natural, e como que se moviam, quando elle fallava com animação.
No abdomen, volumoso e crescido, bem como nas costas, notavam-se duas grandes cicatrizes.
Tinha 62 pollegadas de altura, era analphabeto, e apresentava um aleijão na mão esquerda.
Fortunato era estimado na fazenda pelo seu humor folgazão, e porque sabia entreter os seus miseros companheiros de captiveiro, por meio de historias que elle contava com certa graça.
Um dia, porém, revoltado por ter sido castigado, premeditou um assassinato, e o executou com a maior calma.
Foi victima do miseravel uma infeliz mulher, sua senhora, de nome Anna Custodia de Souza, esposa do fazendeiro Garcia.
Recolhido á prisão, e transferido depois para a cadeia de Ouro Preto, foi elle condemnado a galés perpetuas, como incurso no grau maximo do art. 192 do codigo criminal, em virtude do art. 194 do codigo do processo, por sentença datado de 13 de novembro de 1868, tendo havido appelação, que não foi decidida.
Tinha elle 24 annos de idade, em 1835, quando fez a sua estréa, como carrasco. Estava preso, mas não tinha sido ainda comdemnado.
É esta a longa serie de seus sinistros trabalhos:
No dia 20 de março de 1835 seguiu de Ouro Preto para Itabira, onde enforcou um criminoso, voltando a 2 de junho de 1840 para a sua prisão.
Foi uma estréa auspiciosa, Fortunato mostrou-se orgulhoso, ao ver que n'esse dia era alvo dos olhares da multidão, e trabalhou limpamente. Se elle nascera para aquillo!
A 26 de setembro de 1840 seguiu para Caethé, onde foi cumprir o seu fatal dever, recolhendo-se a 1 de outubro de 1843.
A 21 d'este ultimo mez seguiu para Piranga, onde executou o réu Antonio Cobra, voltando a 30 do mesmo mez.
A 6 de Novembro seguiu para Itabira, recolhendo-se a 20 do mesmo mez.
A 10 de outubro de 1846 partiu para Tres Pontas, regressando a 18 de novembro.
A 1 de dezembro d'esse anno seguiu para Pitanguy, onde enforcou o réu Balduino, escravo de Antonio Nunes Carneiro, regressando a 20 de janeiro de 1847.
A 1 de março seguiu para Barbacena, onde executou o réu Fernando José de Araujo, regressando a 20 de junho de 1847.
A 30, ainda d'esse mez, seguiu para o Piauhy, regressando a 20 de junho de 1847.
A 23 de janeiro seguiu para Conceição do Serro, regressando a 20 de fevereiro de 1849.
A 26 de maio seguiu para Uberaba, onde fez diversas execuções, recolhendo-se a 28 de julho do mesmo anno.
A 5 de outubro seguiu para S. João Nepomuceno, regressando a 30 de novembro.
A 18 de dezembro, ainda de 1849 seguiu para o Serro, onde executou o réu José Africano, recolhendo-se a 15 de janeiro de 1850.
A 26 de fevereiro seguiu para Araxá, voltando a 28 de abril.
A 27 de setembro seguiu para o Curvello, affim de executar o réu Celestino, regressando a 17 de outubro.
A 11 de novembro seguiu para S. João d'El-Rei, para executar o réu João, escravo de Francisco José Antonio Guimarães, seguindo d'alli para Barbacena a 4 de dezembro, para executar o réu Antonio Moçambique, e recolhendo-se a 20 de janeiro de 1851.
A 30 de junho de 1852 seguiu de novo para S. João d'El-Rei, afim de executar o réu Fortunato Creoulo, recolhendo-se a 31 de julho.
A 23 de agosto seguiu para o Curvello onde enforcou o réu João Paulo Pereira, recolhendo-se a 27 de setembro.
A 7 de outubo seguiu para o Mar de Hespanha, afim de executar o réu Germano, e recolheu-se a 9 de novembro.
A 6 de maio de 1853 seguiu para o Rio Preto, afim de executar os réus Marcellino Creoulo e Antonio Navaldão, assassinos de seu senhor, Luiz José Paula, e recolheu-se a 10 de junho.
A 1 de julho seguiu para Curvello, onde executou o criminoso Casimiro Pereira da Silva, regressando a 1 de setembro.
A 7 de outubro seguiu para Barbacena, regressando a 8 de novembro.
A 16 de julho de 1854 seguiu para Curvello, recolhendo a 4 de agosto.
A 5 de setembro seguiu para o Mar de Hespanha, regressando a 10 de outubro.
A 17 de novembro seguiu de novo para o Mar de Hespanha, onde executou os réus Antonio Cambinda, Antonio Angola e Pedro Noddão, voltando a 30 de dezembro.
A 18 de maio de 1855 seguiu para Jacuhy, recolhendo-se a 1 de junho.
A 19 do mesmo mez seguiu para Pouso Alegre, onde enforcou o réu José, escravo, regressando a 20 de julho.
A 8 de outubo seguiu para Piranga, onde executou os réus Antonio Bento Monteiro e Ignez, escrava, regressando a 21 de outubro de 1856.
A 4 de novembro seguiu para Caldas, regressando a 30 de dezembro.
A 16 de novembro de 1857 seguiu para Leopoldina, onde executou os réus David, Amancio, Vicente e Joaquim, recolhendo-se a 13 de janeiro de 1858.
A 14 d'esse mesmo mez seguiu para Marianna, onde enforcou o celebre criminoso José Joaquim Gomes da Fonseca, mais conhecido pelo appellido Tira-Couro, regressando a 20, ainda d'esse mez.
A 7 de abril seguiu para Sabará, afim de executar os réus Peregrino e Rosa, recolhendo-se a 20 de abril.
Finalmente, a 19 de julho, seguiu para Diamantina, onde enforcou o réu Archanjo, regressando a 20 de setembro d'esse mesmo anno de 1858.
Ainda exerceu elle o seu funesto officio em diversas localidades, tendo-lhe passado pelas mãos mais de 50 criminosos.
Um anno depois da sua ultima execucção, começou Fortunato a mostrar-se amodorrado, tristonho, sombrio, manifestando a cada momento a profunda saudade que tinha dos bellos tempos em que trabalhava.
- Vocês querem então que eu morra?! dizia elle muitas vezes aos guardas da prisão. Então não ha por ahi mais ninguem a quem eu tenha de mandar embora?! Já não se faz mais justiça n'esta terra?!
Pouco a pouco foi Fortunato perdendo a robustez da sua musculatura de aço, e aquella constante jovialidade que fazia d'elle um carrasco alegre.
A definhar lentamente, chegou Fortunato até á idade de 72 annos, e falleceu a 9 de julho de 1883, deixando de si tristissima recordação na provincia de Minas Geraes.
D'elle se póde dizer que foi um homem que soube exercer limpamente o seu miseravel officio, pois o fazia como se não houvesse nascido para outra cousa.
Em Minas Geraes tornou-se lendario o sinistro nome d'esse carrasco, de quem damos hoje o retrato.
Fonte: GAZETA DE NOTICIAS (Rio de Janeiro/RJ), 02 de Novembro de 1889, pág. 01, col. 04-05
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