Nenhuma lenda confirma essa opinião.
O cantor dos Timbiras assim descreve o Kaapora:
'O Caapora (vulgarmente caipora) veste as feições de um indio, anão de estatura, com armas proporcionadas ao seu tamanho, habita o tronco das arvores carcominadas para attrahir os meninos que apanha desgarrados nas florestas. Outras vezes divaga sobre um tapyr, ou governa uma vara de infinitos kaititus cavalgando o maior delles.
Os vagalumes são os seus batedores, e tão forte é o seu condão, que o indio que por desgraça o avistasse, era mal sucedido em todos os seus passos.' Magalhães seguio tambem a mesma opinião de Simão de Vasconcellos tanto que Aimbire quando dirige-se ao pagé que o aconselha:
'Procurar outra terra mais remota'
Brada:
'Tudo deixar?... Fugir? Mas tu deliras!...
Fugir?... Que Curupira malfasejo.
Inspirou-te tão baixos pensamentos?...'
O autor do Diccionario Braziliano, o sabio Frei Velloso, a quem a botanica brazileira tanto deve, admitte não sem razão, que Korupira é o demonio do matto, como se vê no dito diccionario publicado em 1795.
Dizem que quando o individuo vê-se perdido no matto, encantado pelo Korupira, para quebrar o encanto que faz esquecer completamente o caminho, deve fazer tres pequenas cruzes de páo e collocal-as no chão triangularmente, (Rio Negro); ou fazer outras tantas rodinhas de cipó que collocará tambem no chão (Rio Yuruá e Solimões) e que o Korupira dá-se ao trabalho de desfazer ou então fazer ainda pequenas cruzes de kauré que atira pelas costas (Rio Tapajóz). O Korupira tambem persegue os caçadores em casa com os seus assovios (Rio Negro) e para o fazer calar-se basta bater-se em um pilão.
Quando o Korupira atravessa o Gurupy e entra no Maranhão, não muda de nome, mais ahi, de preferencia mora no grelo dos Tucunzeiros e procura as margens do rio para pedir fumo aos canoeiros, e virar-lhes as canoas quando não se lhes dá, fazendo as mesmas correrias pelos mattos, onde têm as mesmas formas com que se apresenta no Amazonas.
Atravessando pelo Rio-Grande do Norte e pela Parahyba, toma então o nome de Kaapora; torna-se inimigo dos cães de caça e affecta a forma de qualquer animal afim de attrahil-os para o centro dos mattos, onde ou os açoita com cipós ou os mata. Outras vezes obriga os cães a correr atraz delles, para fazer com que os caçadores os sigam; desapparecendo de repente, deixa os cães tontos e os caçadores perdidos. N'estas provincias quase sempre anda a cavallo n'um veado, ou num coelho. Indo o caçador munido de fumo e encontrando o Kaapora, se este pedir-lhe e for satisfeito pode contar que será d'ahi em diante feliz na caça.
No Ceará conserva o nome de Kaapora porem ahi muda de aspecto, perde o pello do corpo que transforma-se em cabelleira, de cabelos hirtos; apresenta dentes afiados como os de guaribas e olhos como brasas; sempre que sahe das mattas da serra monta n'um taititú, com uma chibata de yapekanga (Smilax Brasiliensis Spreng) na mão.
Avistando o caminhante começa logo a cantar:
Currupá papaco!
Currupá papaco!
Creio que essa cantiga é de importação portugueza, porque os degredados que depois de 1564 começaram a vir para o Brazil principalmente Açorianos, que ainda no começo deste seculo vieram para o Amazonas, cantavam:
Algum dia ja cantei
Hoje em dia não canto mais.
Pacos pacos papacos
Rupa pacos
Pacos pacos papacos
Rupa pacos
Cantiga que os sertanejos ensinam ás kurikas e papagaios e que estes levaram para o Sul onde quase todos os papagaios isso cantam. Em Inhamuns, sertão do Ceará e outros lugares, da mesma provincia as sertanejas terminam a cantiga ensinando os papagaios a dizer:
Curupá papaco,
Curupá papaco,
Não me pegue no tabaco!...
Isso se refere ao fumo que no Norte só se conhece por tabaco, que o Kaapora pede, porém os maliciosos, levam o significado da palavra para outro lado.
N'essa provincia não perdôa ao caçador, que, sem o seu consentimento invade-lhe os dominios, licença essa que é facil de se obter mediante um pouco de fumo. Favorece-lhe a caça, mas recommenda que não a fira e sim a mate, para não lhe dar o trabalho de andar procurando plantas medicinaes com que cure os ferimentos.
Na provincia de Pernambuco reapparece o Korupira, como synonimo de Kaapora, e em alguns lugares tem um só pé, esse mesmo redondo. Anda a cavallo n'um veado e por chicote traz um galho de yapekanga. Tem comsigo sempre um cão chamado Papa-mel. É então um caboclo pequeno coberto de cabellos, que dizem ser a personificação da alma de caboclo pagão.
Como em toda a parte é o protetor da caça, cuja destruição evita, mas n'essa provincia nem sempre torna infeliz aquelles que o encontram. Para captar-lhe a sympathia basta um presente de fumo.
Com isso tem por protector o mesmo Korupira, que surra os cães dos caçadores sovinos e os deixa depois amarrados para morrerem á fome.
Entre muitos factos passados n'essa provincia com caçadores protegidos pelo Korupira, citarei este: um homem costumava levar mingáo todas as noutes a um Korupira, porém este, encontrando uma vez o mingáo com pimentas, que a mulher do caçador tinha posto, deu uma surra no homem e nunca mais o protegeo.
Em outros lugares, tambem de Pernambuco, o Korupira por uma excepção, é representado por um pequeno gentio de cocar e fraldão de pennas, armado sempre de arco e flechas.
Como melhor não descreveria o que é esse mytho em Pernambuco, e quaes os seus costumes e a sua indole aqui reproduzo uma poezia popular, com que, do Recife, me obsequiou o meu amigo Dr. Regueira da Costa:
O KORUPIRA
De dia não busca a estrada
O guerreiro Korupira,
Porque dorme o somno solto
Á sombra da sukupira.
Mas de noite, quando a lua
Prateia as aguas da fonte,
E a fresca brisa sussura,
Eil-o que surge do monte.
Montado n'uma queixada,
Rompe do bosque a espessura;
Da onça não teme as garras,
Tendo trez palmos de altura!
Da yaindaya a verde pluma
Na fronte relúz, ondeia;
O arco, as pequenas flexas,
Garboso nas mãos meneia.
Assim anda, pula e corre
De noite pelas estradas:
E após si em tropel marcha
Uma vara de queixadas.
O grunhido, o som dos passos
O estalar dos rijos dentes,
Quebranta a mudez da selva,
Acorda os pobres viventes.
Pula aterrado o macaco.
Verga a folha das palmeiras;
Sai a cotia da toca,
Foge do matto às carreiras.
Quando encontra o Korupira
No caminho um viajante,
Pára de pressa, e atrevido
Oppõe-se a que marche avante.
Irado, salta do peito
Agudo silvo estridente:
E logo em volta se ajunta
A sua guerreira gente.
Os olhos tornão-se brazas:
Põem-se em ordem de batalha;
O queixada amola os dentes
Que cortam como navalha.
Ai! do pobre caminhante,
Se o temor o tem tomado:
Perde a falla, fica escravo,
Sendo em porco transformado!
Mas, se investe os inimigos,
E de nada se apavora,
De repente o Korupira
Pelo valor se enamora!
Da peleja cede o campo,
E reparte o seo thesouro:
Ricas pedras de brilhantes,
Rubins, esmeralda e ouro.
Em Sergipe, o Kaapora anda sempre pelas estradas pedindo fumo aos viajantes para o seu cachimbo, e quando se lhe não dá mata-os a poder de cocegas. Em ar de brincadeira, faz rir o viajante até cahir morto."
Fonte: MUSEU BOTANICO DO AMAZONAS. Vellosia, 1887, volume 1. Manaus/AM: Typographia do Jornal do Amazonas, 1888, pág. 94-99.
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