sábado, 21 de abril de 2018

O Litoral do Brasil


"Passando agora a considerar o aspecto do litoral brasileiro, verifica-se ser ele constituído, na sua maior extensão, por praias oceânicas de contornos suaves, francamente batidas pela vaga do largo. De uma maneira geral, ao longo da linha costeira, os acidentes geográficos escasseiam: nem o mar invade, nem a terra avança; faltam mediterrâneos, penínsulas, golfos, ilhas consideráveis; os dois elementos coexistem, quase sem transições e sem penetração. A costa norte corre mais baixa, quase retilínea e entremeada de dunas e lençóis de areia aquém Amazonas; baixa, lamacenta, de contornos variáveis, entre o Amazonas e o Oiapoque. Os materiais marinhos, os sedimentos fluviais dão-lhe o aspecto das costas compensadas; os portos rareiam, as barras dos rios são as verdadeiras entradas, em geral precárias.

A costa, desde Pernambuco até Santa Catarina, arrima-se à serra do Mar, varia de aspecto: aqui, extensões arenosas; além, barreiras vermelhas, encostas encobertas de matas ou montanhas que arcam com as ondas. Nela existem as maiores baías do Brasil: Todos os Santos, Camamu, Guanabara, Angra dos Reis e Paranaguá. Em larga porção do litoral os bancos de coral sucedem-se quase sem interrupção, acompanhando a costa. As aberturas concedidas pela natureza nessa barreira apenas dão acesso a alguns portos sofríveis. Também os estuários dos inúmeros e caudalosos rios que desaguam nos mares brasileiros, por um capricho infeliz da natureza, não proporcionam portos abrigados e livres de perigos. A lama, os baixios e outros entraves à navegação acumulam-se na foz dos rios de alentado volume de água como o Parnaíba, o São Francisco, o Jequitinhonha e o Paraíba do Sul, permitindo, quando muito, a precária instalação de portos de terceira categoria. O próprio estuário do Amazonas apresenta sérias limitações à livre navegação.

As condições geralmente pouco favoráveis do litoral brasileiro são mais facilmente avaliadas sendo comparadas às de nações marítimas, como a Grécia e a Grã-Bretanha. O pequeno país balcânico, com apenas 130 mil quilômetros quadrados de território continental e insular, graças à costa extremamente recortada da península e ao grande número de arquipélagos, possui um desenvolvimento litorâneo superior ao do Brasil, com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, banhado pelo Atlântico em metade de seus limites. Na Grã-Bretanha, quase todos os pequenos rios abrem-se junto ao mar em estuários amplos e profundos. As marés das enchentes levam, sem empecilhos, as águas oceânicas até bem o interior. É nas largas bocas desses rios de pequeno curso que se situam os portos mais movimentados da Ilha: Londres, Liverpool, Bristol, Cardiff, Newcastle, Hull, Glasgow. Em toda volta da Ilha Britânica, dificilmente navega-se mais de cem milhas sem encontrar um porto amplo e seguro. Que contraste com o Brasil que, das bocas do Amazonas até o cabo Calcanhar, numa extensão de mil milhas, não apresenta uma única baía capaz de abrigar convenientemente muitos navios de porte, ao mesmo tempo, e que do Oiapoque ao Chuí só possui seis portos dando acesso fácil a navios de média tonelagem!

Todavia, em alguns trechos da costa brasileira, a natureza foi menos ingrata e abriu portos cujas excelências são inegáveis. No litoral baiano encontra-se a magnífica baía de Todos os Santos, além de outras de menor importância; no Espírito Santo há a razoável entrada que constitui o porto de Vitória, mas é sobretudo no largo côncavo, entre o Cabo Frio e o Cabo de Santa Marta Grande, que a costa brasileira apresenta melhores perspectivas para o contato das populações com o mar. Os contrafortes das serras, nesse trecho, desmancham-se no oceano, alterando totalmente o aspecto quase uniforme do litoral. As dunas de areia desaparecem, sendo substituídas por montanhas escarpadas e rochosas. As praias, geralmente menores, são limitadas por cabos, pontas ou penínsulas. Surgem ilhas, grandes e pequenas, próximas à franja costeira. As enseadas sucedem-se. Mais de dois terços das melhores baías naturais do Brasil ficam situadas nesse trecho relativamente do litoral.


Também é nessa parte do litoral que a pesca é mais abundante, talvez em virtude do encontro da corrente fria das ilhas Falklands. Entretanto, apesar de não serem desprezíveis as oportunidades oferecidas pela pesca ao longo de toda a costa do país, é de notar não serem encontradas em nenhum trecho as espécies mais cobiçadas. Não há nos mares brasileiros nada que se compare à riqueza representada pelos cardumes de arenque, salmão ou bacalhau, tão comum nas águas do Japão, do mar do Norte ou das costas da península do Lavrador. Em suma, comparado às condições promissoras do vasto e rico interior, o litoral brasileiro pouco tem a oferecer. Não foi, em consequência, senão uma fração mínima dos habitantes do Brasil que se deixou fixar junto ao mar, nele buscando a maneira de viver.

Naturalmente, numa extensão tão longa de contato forçado do homem com o elemento líquido, não só na orla oceânica, como também nas margens dos rios, alguns grupamentos humanos encaminharam-se para a vida marítima. Surgiram, assim, na bacia Amazônica e ao longo do litoral, populações dedicadas à exploração da pesca costeira ou à exploração do transporte sobre as águas. Em particular, os habitantes das margens dos rios da bacia do Amazonas foram obrigados a adotar uma condição de vida por assim dizer anfíbia, dada a estreita dependência em que vivem do elemento líquido. Ali, os rios não fornecem apenas o alimento, como também o único meio de contato com o resto do mundo ou mesmo com o vizinho mais próximo. Tal estado de coisas obriga a existência de um número de embarcações quase igual ao de habitantes. Desde a mais tenra idade, todas as pessoas habituam-se ao manejo dos remos e das velas dos pequenos botes. Para as populações dos rios amazônicos as pequenas embarcações significam a mesma coisa que o cavalo para o gaúcho. Toda vida econômica ou social depende delas.

Nas praias infindáveis da costa brasileira, de preferência nas angras, baías e na foz dos rios, desenvolveram-se, como em quase todos os países banhados pelo oceano, pequenos povoados de pescadores. Paupérrimos e isolados do progresso, os pescadores brasileiros adotaram práticas que pouco têm evoluído e que não lhes permitiram ganhar o largo. No Nordeste, as condições peculiares da região originaram a jangada, própria para vencer as arrebentações das praias batidas, para passar por sobre os baixios de coral e para navegar com os ventos alísios, mas de pouco rendimento na pesca e imprópria para cruzeiros de maior amplitude. Nos demais trechos da costa, a embarcação mais adotada foi a canoa de tronco, herança indígena, também de possibilidades limitadas. Tanto o jangadeiro do Nordeste como o 'caiçara' do Sul têm de comum o atraso e a pobreza. Um e outro retiram das ondas pouco mais que o mínimo necessário à própria alimentação e à de família.

Quanto à pesca do mar alto, só surgiu em termos recentes. Ao que parece, durante todo o período colonial, a pesca ao largo só foi efetuada por pescadores biscainhos que de 1603 a 1798 detiveram o monopólio da pesca da baleia. Esta, durante bastante tempo, foi a indústria lucrativa, pois os cetáceos abundavam ao longo do litoral do Nordeste e muitas das sólidas construções do Brasil Colônia, ainda hoje de pé, eram edificadas com o cimento à base de óleo de baleia. Mas esta forma de atividade marítima desapareceu por quase um século. Persistiu apenas a pesca costeira, suprindo o consumo local das populações, pois a ausência de uma indústria de conservas de peixe não permitiu que os produtos do mar chegassem às mesas dos habitantes do interior. Foi só em anos recentes que às possibilidades das águas ao longo do litoral do Brasil se abriram novos horizontes. Entretanto, não se pode prever ainda nem quais serão os reflexos no desenvolvimento marítimo do país proporcionado pelas atividades pesqueiras.

A par da pesca praiana, surgiu nos tempos coloniais uma outra forma incipiente de atividade marítima, representada pela navegação que atendia ao intercâmbio das fazendas, engenhos e cidades próximas. Esta navegação, praticada em embarcações de pequeno porte, ganhou desenvoltura principalmente no Recôncavo Baiano, na Região Amazônica e na baía de Guanabara.

A limitada atividade marítima desenvolvida ao longo da costa pouco ou nada contribuiu para o crescimento das cidades oceânicas brasileiras. Elas se mantiveram, desde fundadas até o despontar do século XX, mais como centros administrativos do que como centros marítimo-comerciais de vida própria. Com possível exceção de Recife, não surgiram espontaneamente de aglomerados de pescadores e marinheiros nos pontos mais favoráveis do litoral, mas sim como fruto de decisões tomadas na Metrópole, visando consolidar a posse da terra. Cresceram sem assumir a feição característica das cidades marítimas, de cais movimentados, estaleiros em atividade febril e todo um vasto círculo de empreendimentos voltados para as necessidades das frotas. Não proliferou no Rio, em Salvador, no Recife ou Belém uma classe numerosa com interesses de vulto no mar. O escoamento dos produtos coloniais, a imigração e o tráfico negreiro concorreram, sem dúvida, em certo grau, para a prosperidade dos portos brasileiros, mas sem lhes emprestarem o cunho próprio dos centros voltados para as empresas oceânicas. A alguns poucos armazéns e trapiches onde comerciantes reinóis e representantes da Coroa embarcavam café ou açúcar utilizando o braço escravo, a algumas pequenas oficinas de reparos navais, a diversos estaleiros para embarcações miúdas, às vezes a um arsenal de marinha, resumiam-se os recursos navais dos portos brasileiros. Nada, enfim, identificava as cidades atlânticas do Brasil com os tradicionais centros marítimos da Europa, a exemplo de Lisboa, Gênova, Veneza e Amsterdam. Não foi senão no século XX que o incremento do comércio exterior obrigou o Rio e sobretudo Santos a adquirirem características de cidades portuárias.

Em suma, até o século XIX a agricultura e a pecuária absorveram quase totalmente a população do Brasil, deixando ao comércio, à indústria e às demais atividades parcelas pequenas dos habitantes do país. No mar, os brasileiros foram pouco além da pesca rudimentar, próxima ao litoral, e da navegação de cabotagem. Essa situação se modificou em parte depois da Independência, principalmente nas últimas décadas, por força da evolução econômica sofrida pela nação, mas até hoje é o brasileiro um povo eminentemente continental, a maioria de seus filhos vivendo em ambiente rural e do solo tirando o sustento. Sob esse aspecto apenas alguns países como a China, a Índia, a Indonésia, o Egito e a Rússia apresentaram analogia. Com exceção do trigo consumido principalmente nas cidades, é dos campos do interior que provêm os produtos básicos da alimentação do homem brasileiros: a mandioca, o arroz, o feijão e a carne. O mar só é fonte importante de suprimento alimentar para os habitantes de determinadas regiões litorâneas e da Amazônia.

Portanto, como resultado de uma série de circunstâncias, predominantemente geográficas mas também históricas, políticas, econômicas e sociais, até hoje não se estabeleceram laços efetivos entre o mar e a nação brasileira."

Fonte: CAMINHA, João Carlos Gonçalves. História marítima. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980, p. 253-258.

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