quinta-feira, 7 de julho de 2016

Ser ou não ser gaúcho, por José Iran Ribeiro


Ser ou não ser gaúcho

“Só há no mundo três denominações, três classes de habitantes: rio-grandenses, ou ‘filho do país’; castelhano, ou hispano-americano; e baiano. Para o gaúcho rio-grandense, quer um homem tenha nascido à sua porta, na província de Santa Catarina, quer venha da Lapônia, é sempre baiano. E se, para ele, o gaúcho castelhano é rival odiado, ao menos considera-o seu igual, pois sempre é gaúcho, ao passo que o baiano é um ser inferior, porque não maneja bolas nem laço, não se tem por ‘centauro’ e não entende ser desonra andar a pé”.
Escritas em 1865, as palavras do conde d'Eu, em sua “Viagem militar ao Rio Grande do Sul”, tratam de algo que não era novo naquela província. As lutas pela definição das fronteiras do sul possibilitaram o convívio entre indivíduos de diversas partes do Brasil e, consequentemente, a transformação das identidades locais e regionais. Ocorrida entre 1835 e 1845, a Guerra dos Farrapos foi um dos exemplos mais significativos dessa interação entre gente de diferentes origens e culturas. 
Durante o longo conflito, milhares de soldados foram enviados de todas as regiões do país para compor o Exército Imperial brasileiro e combater os republicanos rio-grandenses. Quem chegava deparava-se com padrões culturais mais ou menos distintos dos de sua terra de origem. Ao mesmo tempo, os rio-grandenses travavam contato com brasileiros com características diferentes das que havia em sua província. Além do valor relativo atribuído ao andar a cavalo (“ter-se por centauro”, na expressão do conde d'Eu), havia outras especificidades entre aqueles homens, como os numerosos sotaques e a dificuldade de adaptação dos recém-chegados ao clima frio e à dieta à base de carne bovina. Notável é que essas distinções contribuíam para definir as identidades regionais, mas não impediram aproximações, que chegaram a se tornar matrimônios entre militares de outras partes do Brasil e mulheres da província.
Na época, a imensa maioria das pessoas aprendia a falar o português abrasileirado segundo as práticas populares de onde provinha. Os naturais das regiões com forte presença escrava, por exemplo, tinham um “falar crioulo” – que incluía as contribuições linguísticas do iorubá e do quibundo – em parte desconhecido em São Paulo, onde a “língua geral” dominava as conversas, com suas expressões do tupi-guarani ou nhengatu.
Estas e outras variações linguísticas foram reunidas numa terra onde os espanholismos marcavam o falar. A combinação muito provavelmente resultou em obstáculo inicial e generalizado de comunicação. Ao menos foi o que registrou o engenheiro militar visconde de Taunay, em memórias escritas sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870). Ao manifestar sua afeição pelo general Osório, ele menciona a dificuldade em compreender o que o companheiro dizia, “tal a mescla de português e espanhol agauchado”.
A maneira como os indivíduos encaravam o clima era também uma questão. Os que vinham das regiões mais quentes não tinham problemas no verão, mas sofriam quando o inverno chegava. As temperaturas baixas, os ventos gélidos e a alta umidade faziam aumentar a incidência de doenças e as deserções. Os rios transbordavam, os caminhos viravam atoleiros, os cavalos tornavam-se inúteis. Era época de reunir os efetivos em acampamentos protegidos do frio e prepará-los para o reinício das operações. Para os comandantes militares, as dificuldades de aclimatação das tropas transformavam-se em prejuízos calculados: “cada recruta que vem do norte não fica aqui posto por menos de 400 réis, porque logo que saindo de suas casas lá do sertão vêm vencendo, e os condutores, fretes, armamentos, e fardamentos, e destas algumas é só número, que vão ao hospital e de lá para o cemitério”. Em 1840, estimava-se que, dos 7.979 integrantes do efetivo total em operações no Rio Grande do Sul, podia-se contar com menos de 6.500. Diferenciando a origem dos doentes, o barão de Caxias afirmou que “dois terços dos recrutas que vêm do norte vão por muito tempo povoar os hospitais”.
Pode-se mensurar essas adversidades acompanhando o deslocamento de uma unidade. Eram 1.200 os homens mobilizados de Santa Catarina até o oeste do Rio Grande do Sul. Do Desterro (Florianópolis), levavam 35 dias para chegar a Rio Grande em três viagens a bordo de barcas a vapor, e dali seguiam em vapores por mais oito dias até Triunfo. Cachoeira era alcançada com mais dez dias de caminhada. A marcha continuava até Alegrete, atravessando rios e arroios que no inverno não permitiam a passagem a pé ou a cavalo e podiam encher a qualquer momento. Em tempos de paz, uma única unidade ligeira, sem artilharia, cobriria a distância em 30 dias. Em guerra, o prazo era inimaginável. Se fossem tropas aclimatadas, o desgaste não seria tão grande, mas sem qualquer experiência, “o soldado que escapasse ao rigor do tempo não poderia escapar ao ferro do inimigo”, vaticinavam pessimistas como o conde de Rio Pardo.
As tropas eram atacadas por “bexigas”, “febres e afecções cerebrais”, febre tifoide, entre outras doenças. Parte delas resultava da baixa resistência física dos recrutas, do pouco cuidado dos médicos nas inspeções de saúde, das péssimas condições de higiene, dos inapropriados meios de transporte. A disenteria, um dos males que mais vitimavam os militares, tinha relação com os hábitos alimentares da região. No extremo sul, devido à abundância de gado, as refeições se baseavam na carne seca ou fresca. Em casos extremos, os soldados eram alimentados unicamente com carne durante meses. Uma dieta quase exclusiva de proteína não era algo facilmente digerido por quem estava habituado a maior variedade nutricional. 
A conjugação desses fatores estava à vista de todos: “rigoroso frio e chuvas, que por extremo aniquilam a nossa infantaria, que com a falta absoluta da farinha, e só reduzida à simples carne de vaca, tem consideravelmente adoecido de disenterias, a que muitos sucumbem”. Daí criou-se o entendimento de que “soldados de fora não podem passar sem (...) farinha porque logo adoecem, pois não estão habituados como nós a estas privações”, segundo o comandante em chefe do Exército, o brigadeiro Antônio C. Seara, em 1841. 
Sobre as diferenças dos costumes militares entre os sulinos e o soldado nordestino, o escritor Apolinário Porto Alegre afirmou que este “não bate-se a cavalo, mas bate-se bem de a pé”. Para além do status social, diferentemente de outras regiões, no Rio Grande do Sul servir na cavalaria representava uma oportunidade de ascensão mais rápida na carreira, e inúmeros militares de infantaria solicitavam transferência para as unidades montadas. Mas havia também o aspecto cultural. As características físicas da região e a economia pastoril desenvolvida no Rio Grande do Sul a partir do século XVII forjaram uma cultura dependente do uso de cavalos. A lida nos campos e o quase permanente estado de guerra na região ao redor do Rio da Prata contribuíram para transformar os povos dali em exímios cavaleiros, o que, somado à crescente diferenciação social entre os que andavam montados e os que tinham de caminhar, resultou na valorização extremada do serviço militar na cavalaria, a ponto de se transformar num dos mais importantes elementos da identidade regional.
Mesmo com todas as diferenças culturais, os rio-grandenses não viam empecilhos em estreitar relações com os não nascidos na província. Exemplo disto são as uniões entre mulheres naturais da região e militares vindos de outras localidades. Os registros de batismo das paróquias de Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e São José do Norte informam que mais de 80% dos casamentos dos militares não rio-grandenses ocorriam com mulheres nascidas na província. Se, por um lado, isto acontecia porque elas eram maioria, por outro, indica que devia haver algum exagero nos relatos do conde d’Eu: mesmo numa situação de guerra e com valores identitários estabelecidos, os rio-grandenses não rejeitavam totalmente a ideia de construir uma identidade brasileira plural. 
José Iran Ribeiro - professor da Universidade Federal de Santa Maria e autor de O império e as províncias: Estado e nação nas trajetórias dos militares do exército imperial no contexto da Guerra dos Farrapos (Arquivo Nacional, 2013). 

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