Nota: os grifos são nossos.
Há milhares de anos, o homem primitivo, em consequência da transformação do seu estilo de vida - passando de colhedor a caçador - , precisou enfrentar acidentes, moléstias e outras perturbações corporais. Para arcar com esses novos desafios, precisou atingir um estágio mínimo de evolução cultural em conjunto com seu avanço na escala evolutiva biológica, estágio este que o capacitaria a somar a sua experiência consciente ao seu instinto animal. Assim, não só aprendeu a reconhecer plantas capazes de ajudar feridas, curar doenças e aliviar a dor, mas também - faculdade essencial e igualmente importante - a distinguir essas plantas daquelas que podiam lhe ser nocivas. São esses conhecimentos empíricos, incorporados no herbalismo e transmitidos de geração em geração, que caracterizam as práticas médicas chamadas primitivas.
Como todos os povos nativos dos trópicos, os brasilíndios souberam beneficiar-se da enorme diversidade da flora e fauna das suas terras. Os seus vastos conhecimentos da vida vegetal oriundos da sua familiaridade com as plantas capacitaram-nos a utilizar-se daquelas que possuíam propriedades medicinais.
Seus conhecimentos, passados de geração em geração, possivelmente não teriam nos alcançado não fossem os relatos de aventureiros e colonizadores. Embora o conteúdo de seus relatos difira em certas particularidades, viajantes e cronistas da época são unânimes em sua admiração pelos vegetais usados nestas terras para fins medicinais. Nem sempre as indicações terapêuticas das plantas mantiveram-se inalteradas ao longo do tempo. Dois conhecidos exemplos são o guaraná (Paullinia cupana Kunth), originalmente prescrito para combate às disenterias, e o maracujá (Passiflora spp.) para febre.
Jean de Léry (1534-1611) em 1563 descreveu o uso do hiyuaré (Hinuraé) - possivelmente Pradosia glycyphloea (Casar.) - empregado pelos indígenas contra o pian. Ele também menciona o petyn, posteriormente identificado como tabaco (Nicotiana tabacum e outras da família das solanáceas), que permitia, segundo ele, mitigar a fome em períodos de guerra e escassez alimentar, além de - ecoando a medicina galênica - "destilar os humores [...] do cérebro".
Em vista das virtudes que lhe são atribuídas goza essa erva de grande estima entre os selvagens; colhem-na e a preparam em pequenas porções que secam em casa. Tomam depois quatro ou cinco folhas que enrolam em uma palma como se fosse um cartucho de especiaria; chegam ao fogo a ponta mais fina, acendem e põem a outra na boca para tirar a fumaça que apesar de solta de novo pelas ventas e pela boca os sustenta a ponto de passarem três a quatro dias sem se alimentar, principalmente na guerra ou quando a necessidade os obriga à abstinência. Mas os selvagens também usam o petyn para destilar os humores supérfluos do cérebro, razão pela qual nunca se encontram sem o respectivo cartucho pendurado no pescoço. Enquanto conversam costumam sorver a fumaça, soltando-a pelas ventas e lábios como já disse, o que lembra um turíbulo. O cheiro não é desagradável. Não vi porém mulheres usá-la e não sei qual seja a razão disso mas direi que experimentei a fumaça do petyn e verifiquei que ela sacia e mitiga a fome.
Para o "bicho-do-pé" (tungíase), os indígenas untavam a lesão com o óleo de uma fruta chamada hibourouhu (Myristica L.). Thevet (1502-1590), monge franciscano que permaneceu em terras brasileiras entre 1555 e 1556, em seu livro Singularidades da França Antarctica a que outros chamam de América, considerava esse óleo próprio para a cura de feridas e úlceras, provando ele mesmo sua ação terapêutica..
Pero de Magalhães Gândavo (?-1590), na bela obra publicada em 1567, História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, foi o primeiro a descrever o óleo de copaíba (Copaifera sp.) como analgésico e cicatrizante eficaz. O seu sucesso terapêutico correu mundo e, durante o século XVII, chegou a ser, ao lado do cravo, anil e tabaco, um dos principais produtos de exportação das províncias do Grão-Pará e Maranhão.
Contudo, é a admirável obra Tratado descritivo do Brasil de 1587, de Gabriel Soares de Souza (1540-1594), que se perpetuou em verdadeiro manual de terapêutica indígena, Recomendava carimã (farinha de mandioca seca), misturada à água, como antídoto de envenenamentos e vermífugo; milho (Zea mays L.) cozido, para tratar doentes com boubas; sumo de caju (Anacardium occidentale L.), pela manhã, em jejum, para a "conservação do estômago" e higiene da boca; emplastros de almécega (Protium heptaphyllum March.; P. brasiliense [Spreng.] Engl.), muitas variantes e subespécies; várias outras espécies para "soldar carne quebrada"; amêndoas-de-pino (figueira-do-inferno - Datura stramonium L.) para purgas, cólicas; araçá (Psidium cattleyanum Sabine e várias da família das mirtáceas) para "doentes de câmaras" (diarreia); tinta de jenipapo (Genipa americana L.) para secar boubas; jaborandi (Philocarpus jaborandi) para feridas na boca; cajá (Spondia lutea L.) para febre e camará (Lantana spinosa L. ex Le Cointe) para sarna.
Frei Vicente do Salvador (1564-1635), em sua obra História do Brasil: 1500-1627, fez ampla descrição da vegetação brasileira. Conservando algumas vezes o seu nome indígena e rebatizando outras em português, indicava o uso de algumas plantas destacando, por exemplo, o poder terapêutico e cicatrizante da cabriúva (Myrocarpus frondosus Allemão, da família das leguminosas, subfam. Papilionoídea), e das folhas da jurubeba (Solanum paniculatum L.). Mencionava ainda, entre outras, a erva fedegosa (feiticeira - Cassia occidentalis L. e outras), a salsaparrilha (Smilax spp.), o andaz (Joannesia princeps Vell. e outras euforbiáceas), como úteis no combate a uma grande variedade de doenças.
Entretanto, a planta medicinal que mais interessou os europeus foi, sem dúvida, a ipecacuanha (Psychotria emetica L.f., Chephaelis ipecacuanha [Brot.] A.Rich., e outras espécies) - palavra originária do tupi i-pe-kaa-guéne, que significa "planta de doente de estrada" - , usada como purgativo e antídoto para qualquer veneno. A indicação medicamentosa nativa é inerente à própria lenda transmitida por inúmeras gerações de índios aos seus descendentes, e exemplifica como uma atenta observação da natureza era capaz de fornecer informações imprescindíveis aos que cuidavam da saúde tribal. Contavam os anciães que a natureza emética da planta havia lhes sido ensinada pela irara, animal que tinha por hábito alimentar-se das raízes e folhas de ipecacuanha, sempre que tivesse bebido água malsã de um pântano, ou alguma água impura, Desse modo, tomaram para si a lição que o animal lhes dera, passando a fazer uso da benfazeja planta sempre que necessário.
Fonte: GURGEL, Cristina. Doenças e curas: o Brasil nos primeiros séculos. São Paulo: Contexto, pág. 61-64.
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