quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O deus Tupã



 Muito mais vago que o Olorum dos negros nagôs, era o Tupã dos ameríndios brasileiros.

Era como o Sita dos árias, o Ma dos egípcios, o Tau dos chineses, o Morai dos gregos, entidade acima das contingências humanas, inacessível às súplicas, indiferente aos destinos terrenos. Não tinha a manifestação inicial dos cultos primitivos, que é a lenda explicativa, o conto etiológico. Não fazia milagres nem tinha forma.

Era Tupã o que os folcloristas ingleses chamam Nature God, personificação abstrata de forças cósmicas, com atuação meteórica, sem interferência na vida sublunar. Pertencia à fase inicial das religiões. Era um elemento que Durkheim dizia préanimiste. Lévy-Bruhl escreve que, nas sociedades primitivas, todas as funções de presença de seres sobrenaturais. E como toda participação tende a ser representada nos fenômenos meteorológicos, que deviam impressionar maiormente aos indígenas, era natural que certos seres fossem apontados como dirigindo o trovão, o raio, o relâmpago e a chuva. Antes, esses fenômenos seriam deificados intrinsecamente. Na fase atual é que a diversificação se completa.

O trovão podia ser um simples fenômeno, o trovão mesmo, deixar de representar outra entidade, possivelmente o espírito diretor do fenômeno. É a aplicação da lei da participação que Lévy-Bruhl enunciou.

Quando o padre Manuel da Nóbrega, o grande catequista, chegou ao Brasil em 1549 e o estudou, sua impressão, lealmente expressa numa carta ("Informação das Terras do Brasil, nas Cartas do Brasil, Rio, 1931, p. 99), revela a perfeita ausência de culto e de personalidade das trovoadas:

Essa gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhecem a Deus; somente aos trovões chamam Tupane, que é como quem diz cousa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus que chamar-lhe Pai Tupane.

O huguenote francês Jean de Léry tivera a mesma observação e praticara processo idêntico:

Quando o trovão ribombava, a que chamavam Tupã, assustavam-se e nós aproveitávamos o lance para dizer-lhes que era Deus que assim fazia tremer o céu e a terra, a fim de mostrar sua grandeza e poder.

Gandavo notara o mesmo:

Nam adoram a cousa alguma, nem têm para si que há depois da morte gloria par bons, e pena para maus.

O padre Fernão Cardim alude que:

... não têm nome próprio com que expliquem a Deus, mas dizem que Tupã é o que faz os trovões e relâmpagos, e que este é o que lhes deu as enxadas e mantimentos, e por não terem outro nome mais próprio e natural, chamam Deus Tupã.

O padre Cláudio de Abbeville rezava pela mesma cartilha:

... os tupinambás não tinham espécie alguma de religião, pois não adoravam um Deus, celeste ou terrestre, nem o ouro e a prata, nem a madeira e pedras preciosas ou outra qualquer cousa.

O franciscano André Thevet endossa o depoimento:

Elle a esté habitée et est habitée pour le iourd'huy, outre les Chrestiens, qui depuis America Vespuce l'habitent, de gens merueilleusement estranges et sauvages, sans foy, sans loy, sans religion, sans civilité aucune, mais vivans comme bestes irraisonnables, ainsi que nature les a produit.

Ivo d"Evreux escreve:

Estes selvagens sempre chamaram Deus - Tupã, nome que dão ao trovão (Viagem ao Norte do Brasil, Rio de Janeiro, 1929, p. 291).

O padre José de Anchieta (Cartas, informações, etc. Rio, 1933, p. 331) na Informação do Brasil e de suas Capitanias, datada de 1584, registra a crença inalterável quase. Mas, 34 anos são passados em ensinança religiosa intensa e já surge um indício de adaptação. Os trovões significam alguma coisa:

Nenhuma criatura adoram por Deus, somente os trovões cuidam que são Deus, mas nem por isso lhes fazem hora alguma, nem comumente têm ídolos nem sortes, nem comunicação com o demônio, posto que têm medo dele, porque às vezes os mata nos matos a pancada, ou nos rios e, porque lhes não faça mal, em alguns lugares medonhos e infamados disso, quando passam por eles, lhe deixam alguma flecha ou penas ou outra coisa como por oferta.

Essa identificação dos trovões com Tupã e este com um deus vai se destacando, vagarosamente. Já em 10 de agosto de 1549, no mesmo ano de sua chegada, o padre Nóbrega escreve ter encontrado um Pajé que se dizia amigo pessoal de Deus

e que aquele Deus dos céus era seu amigo e lhe aparecia frequentes vezes nas nuvens, nos trovões e raios (Cartas do Brasil, p. 59).

Quando o mito de Tupã conseguiu infiltrar-se no espírito do selvagem, não pôde ficar imune de influências estranhas. O próprio Thevet dá várias interpretações ao Tupã naquele começo do século XVI. Nas Les Singularitez de la France Antarctique (ed. Gaffarel, Paris, 1878, p. 134) nega a presença da religião. À p. 138 fala em Tupã:

Noz Sauuages font mention d'un grand Seigneur, et le nommét en leur langue, Toupan, lequel, dissent-ils, estant là haut fait plouuoir et tonner: mais ils n'ont aucune maniere de prier ne honnorer ne une fois, ne autre, ne lieu à ce propre.

São as palavras de Anchieta. Mas o franciscano, nos inéditos de que Alfred Métraux revelou alguns trechos (La Religion des Tupinamba, Lib., Ernest Leroux, Paris, 1928, p. 52), confidencia deduções novas:

Ils appellent Toupan, et ne croyent point qu'il aye puissance de faire pleuvoir, tonner, ou donner beau temps, ny mesmes leur faire venir aucun fruit.

É, evidentemente, um Nature God...

O Tupã, mesmo batizado pela mão venerável do Jesuíta, ficou com sangue bárbaro, cheirando às crendices locais e nem sempre conservando hábitos católicos. Com o passar dos tempos, mesmo para tribos que souberam do trovão deificado ou de Tupã consciente, o mito tomou forma de crença, mas o culto nunca chegou a ser praticado.

Fonte: CÂMARA CASCUDO, Luís da. Geografia dos Mitos Brasileiros. São Paulo: Global, 2012, pág. 59-61. (edição digital)

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