"A fundação dos arraiais do Extremo Oeste Mineiro resultou, em todos os casos, de iniciativas das oligarquias rurais, pela formação de patrimônios religiosos. Um fazendeiro - ou um grupo de fazendeiros vizinhos - doava um trato de terra ao patrimônio de um santo. Sobre ele, esses vizinhos, organizados numa irmandade religiosa, erigiam uma capela, e tratavam de conseguir sobre ela a bênção do vigário da freguesia. A benção da capela, como percebeu Murilo Marx, significava o reconhecimento da existência do povoado pelas autoridades eclesiastico-estatais.
Um povoado, transformado pela ereção da capela em arraial, era o elemento cristalizador da identidade social e territorial do que Antônio Cândido chamou de bairro rural. Identidade que tinha o seu conteúdo manifesto na devoção a um santo, cuja imagem se abrigava na capela. Essa identidade era reforçada pelos encontros que ali ocorriam, aos domingos e dias santos. Neles, as irmandades promoviam missas, festas, procissões e organizavam novenas, das quais participava toda a comunidade de vizinhos. Ali também se realizavam os batizados, casamentos e funerais. Nos batizados, estabelecia-se o parentesco ritual ou compadrio; nos casamentos, o parentesco consanguíneo. Com esses rituais, o grupo de vizinhança ia criando uma consciência de si próprio, reforçando a identidade do bairro, o que Cândido chamou de sentimento de localidade:
Esta é a estrutura fundamental da sociabilidade caipira, consistindo no agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas.
Muller conceituou o bairro rural de uma forma muito próxima da de Cândido:
Designa todo e qualquer conjunto de casas suficientemente próximas para que se estabeleçam contatos sociais entre seus moradores. Trata-se de uma célula de comunidade social, onde existem certos tipos de parentesco ou vizinhança reforçados frequentemente pela existência de uma venda, capela, escola, cujo raio de ação marca os próprios limites do bairro.
O arraial cumpria, assim, uma dupla finalidade: era o elo entre a comunidade e o Estado, por meio das instituições eclesiais, e ao mesmo tempo o núcleo no qual ela reforçava seus laços e reproduzia sua identidade. A fundação de um arraial constituía a expressão da transição de um grupo disperso de sitiantes, ainda vivendo os primeiros e difíceis momentos da ocupação, geralmente isolados uns dos outros, para um grupo com laços de parentesco, cooperação e reciprocidade cada vez mais intensos. Cândido chamou o primeiro grupo de bairro centrífugo, e o segundo de bairro centrípeto:
Há, de fato, bairros de unidade frouxa, que poderíamos denominar centrífugos, propiciando um mínimo de interação: outros, ao contrário, de vida social e cultural mais rica, favorecendo a convergência dos vizinhos em atividades comuns, num ritmo que permite chamá-los centrípetos.
O sociólogo paulista não abordou explicitamente a importância da fundação das capelas como elemento de diferenciação entre um e outro tipo, embora deixe subentendido que o arraial, que ele chamou de núcleo territorial do bairro, ocupava uma posição social e espacialmente cêntrica nele. Chamou a atenção para o fato de que, no conceito de bairro rural, são essenciais não só a existência de grupos rurais de vizinhança, mas também uma base territorial, com ele identificada. No nosso entendimento, era na capela - e no patrimônio ao seu redor - que os grupos rurais tinham a expressão espacial de sua identidade. Era o núcleo atrator que mantinha a coesão das famílias espalhadas pela sua base territorial.
Saint Hilaire deixou sua impressão - típica de um homem da Ilustração - sobre a importância do arraial enquanto o lugar das interações sociais no bairro rural. Referindo-se à região próxima à Serra da Canastra, observou:
Os agricultores passam a vida nas fazendas e só vão à vila nos dias em que a missa é obrigatória. A obrigação de se reunirem e comunicarem uns com os outros, bem como o cumprimento das obrigações religiosas, impede-os, talvez mais do que qualquer outra coisa, de reverterem a um estado de quase selvageria.
A ereção da capela e a fundação do arraial, portanto, apesar de elementos definidores da identidade territorial de uma fração da sociedade - o bairro rural -, eram iniciativas que partiam sempre de uma elite terratenente. Um fazendeiro ou um grupo deles doava um trato de terra ao santo e à futura capela, e esta era erguida com o consórcio dos proprietários vizinhos devotos.
(...)
Contudo, as hierarquias sociais também se reproduziam nos bairros rurais. Nas regiões de fronteira do Brasil no século XIX, apesar de, muitas vezes, os fazendeiros não se distinguirem da massa de camponeses na forma de moradia, vestimenta ou hábitos, como tantas vezes observaram os cronistas, constituíam obviamente uma classe social distinta da dos pequenos proprietários, agregados e escravos. Estes, por sua vez, eram dependentes do poder patriarcal dos potentados locais, dos donos das terras nas quais se estabeleciam, ou de seus senhores, no caso dos cativos. O poder dessa elite sertaneja advinha da massa de dependentes sob seu controle, fossem eles escravos ou agregados estabelecidos em suas terras. A estes, favoreciam de forma paternalista, mas deles também eram cobradas manifestações de lealdade.
Essas relações de poder, fundamentadas num patriarcalismo autoritário, foram percebidas pelos cronistas do início do século XIX. Saint Hilaire, em 1819, nas proximidades do rio Paraibuna, já na província de Minas Gerais, observou:
Às vezes, [os fazendeiros] permitem a um protegido, um compadre, fixar-se à margem da estrada, e não exigem nenhuma retribuição. Se, no entanto, o agregado não presta ao proprietário todas as homenagens que este exige, corre o risco de ser expulso, e proprietários houve que mandaram atear fogo à casa de seus agregados.
O arraial e a capela, além de elementos cristalizadores da identidade de um grupo de vizinhança, funcionavam também como o elo entre ele e a sociedade inclusa. Era o lugar onde a comunidade obtinha artigos importados, não produzidos pela economia local, e vendiam seus excedentes. Ali também, por meio dos registros paroquiais, as pessoas - livres e escravas - passavam a ter existência legal. Quando, depois de algum tempo, o arraial se transformava em vila, com casa de câmara e cadeia, ali passavam a ser resolvidas as pendências judiciais e se decidiam sobre as obras públicas."
Fonte: LOURENÇO, Luís Augusto Bustamante. A oeste das minas: escravos, índios e homens livres numa fronteira oitocentista, Triângulo Mineiro (1750-1861). [livro eletrônico]. Uberlândia: EDUFU, 2005, cap. 6.
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