"Vivia em Florianópolis uma mulher muito bonita. Em toda a ilha de Santa Catarina não havia mulher mais bela. Dona de poderes mágicos e cheia de orgulho, olhava-se no espelho todas as manhãs.
Aquele era um objeto muito especial, que a acompanhava desde criança; era mais que um espelho, era amigo e conselheiro. E tinha mais poder que um amigo, pois era um espelho mágico.
A bela Lucrécia perguntava ao amigo, todas as manhãs, se existia na ilha mulher mais linda do que ela. O espelho respondia que não, e ela ficava feliz. Um dia, porém, a resposta foi diferente:
'O que você ousou dizer?!', perguntou Lucrécia. Ela estava uma fera.
'A verdade', respondeu o espelho.
'Como? Há uma mulher mais bonita do que eu?"
'Infelizmente, sim', disse o espelho.
'E quem é?'
'Cláudia, filha do dono da escola da Joaquina', foi a resposta.
'O quê! Uma pirralha!'
'Ela era pirralha, hoje é uma moça, e muito bonita!', disse o espelho.
'Já chega! Quero conhecê-la', decidiu Lucrécia.
'Acho que está pegando onda na praia, não sei se vai dar para ver', explicou o espelho.
'Não quero saber. Vire-se!', ordenou Lucrécia.
'Veja! Ela está saindo do mar com a prancha...'
'Mas que sem-vergonha! Como ousa me destronar?!'
'Calma, Lucrécia, ela é uma garota; você já teve muitos anos de reinado absoluto.'
'E continuarei a ter! Como se chama mesmo essa metida?'
'Cláudia. É uma boa garota, tem quinze anos.'
Enquanto o espelho falava, Lucrécia andava em círculos pelo quarto. De repente, parou.
'Já sei! Mostre-me onde ela mora', pediu.
'O que vai fazer?', perguntou o espelho.
'Colocá-la fora de combate', disse.
'Nada de violência, dona Lucrécia', alertou o espelho, preocupado.
Ele sabia do que ela era capaz. Ultimamente estava tranquila, casada e feliz, com um marido apaixonado. O espelho até achava que o lado bruxa de Lucrécia tinha se aposentado, mas agora via que estava enganado, e se culpava por isso.
Lucrécia foi até a casa de Cláudia, estacionou o carro e ficou à espera. A garota estava almoçando. Logo depois saiu, para ir à casa de sua amiga Milu. Andava despreocupada pela calçada, quando um morcego pousou no seu pescoço. A garota sacudiu a cabeça, tentando se livrar do bicho, mas não conseguiu. Desesperada, saiu correndo; deu de encontro com uma árvore, bateu a cabeça e desmaiou. Nesse momento, Lucrécia apareceu. Levou o corpo de Cláudia para o carro, pingou umas gotas de sonífero na boca da menina e foi para o sul da ilha. Quando o asfalto terminou, pegou uma trilha de terra. Caminhou um bocado até chegar a uma cabana, no meio do mato.
'Tonho, venha me ajudar!', gritou a bruxa.
Apareceu um velho todo encarquilhado, com as mãos sujas de carvão. Quando viu a menina, deu uma risada, mostrando o único dente que tinha na boca.
'O que aconteceu, dona Lucrécia', perguntou.
'Essa garota tentou me enfrentar, Tonho, e isso eu não posso suportar. Leve-a para o meio do mato e deixa-a lá, bem longe daqui'.
Tonho era tapado, mas não era mau. Procurou um lugar abrigado para deixar a moça. Escolheu um cedro, um dos maiores da ilha, e encostou-a em seu tronco. Satisfeito com a ideia que tivera, voltou para a cabana e esqueceu o assunto: ele cumpria ordens, não as questionava.
Quando viu o velho de volta, Lucrécia deu uma gargalhada. Pegou o espelho na bolsa e perguntou: 'E agora, meu amigo, quem é a mulher mais bela da ilha?'
'Como a moça está fora do circuito, é você'. O espelho sabia que aquela mata era selvagem, e ficou preocupado.
Sentindo-se poderosa, Lucrécia voltou para casa. Estava feliz por ter afastado a concorrente e convidou o marido para comemorar - ela vivia no centro, e não conhecia o preparo físico de uma surfista.
Enquanto o casal tomava vinho, Cláudia acordava - no meio do mato e da noite. Sua primeira reação foi de susto: onde estava? o que tinha acontecido? Mas logo percebeu que não tinha tempo para buscar respostas nem se desesperar; o negócio era pôr a cabeça para pensar. Não ia sair andando no meio da mata, no escuro.
'O melhor que tenho a fazer é subir nesta árvore', disse a si mesma. 'Aqui fico protegida até o dia clarear'.
Trepou no cedro e sentou-se num galho alto. Vieram os morcegos e as corujas, e com eles os ruídos da noite, mas Cláudia ficou firme. Abraçou o cedro e disse que ia vencer aquela prova. Adormeceu no meio da madrugada e só acordou ao amanhecer. Tentava adivinhar que direção seguir, mas não tinha a menor ideia. Então, ouviu uma voz rouca: "Vá na direção norte, você está no extremo sul da ilha'.
A menina olhou para os lados. Não sabia de onde vinha aquela voz, até que percebe que era o cedro falando.
'Está vendo a palmeira aqui atrás? Pois bem, siga nessa direção', disse a árvore.
'Obrigada pela dica, cedro, e pelo abrigo durante a noite', disse Cláudia.
'O caminho é longo. Siga sempre em frente e não pare até sair da floresta'.
Cláudia seguiu o conselho. Depois de andar mais ou menos duas horas, avistou o mar. Chegando à praia, encontrou uma estradinha que contornava o morro e subiu por ela. Estava cansada, tinha sede e fome, mas não se entregou. Quando o sol estava alto, sentou-se à sombra de uma goiabeira e comeu algumas frutas. Retornou o caminho e andou muito até deparar com um ônibus. Contou ao motorista que havia sido sequestrada e disse que queria telefonar para casa.
Enquanto isso, a bruxa dormia. Certa de que a garota estava perdida, não se preocupou mais. Só no outro dia, quando pegou o espelho e fez a pergunta costumeira, tomou um susto com a resposta.
'Quer dizer que aquela safada se safou?', reagiu a bruxa, espantada
O espelho contou o que tinha acontecido.
'Já chega!', concluiu ela. Revoltada e desiludida, Lucrécia decidiu sair de Florianópolis.
'Vou procurar uma ilha mais tradicional, onde a moçada não seja tão atlética. E lá vou desenvolver meus poderes mágicos, que ficaram adormecidos nesses anos todos'.
Fonte: SALERNO, Silvana. Viagem pelo Brasil em 52 histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 150-153.