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terça-feira, 26 de maio de 2015

Meu olhar sobre Capão do Leão

Artigo originalmente escrito por mim para a coletânea "Olhares sobre Capão do Leão", publicada em 2014 pela editora Oikós. Na ocasião, tive dois artigos publicados na coletânea, mas este ficou de fora. Mais tarde, passei a uma professora de Estudos Sociais da rede municipal de ensino para uso em aula. Publico, por hora, como texto pedagógico a quem quiser usá-lo. Só solicito a gentileza de citar a fonte.

Meu olhar sobre Capão do Leão
            Desde pequeno ouço dizer que Capão do Leão é sinônimo de pedra. Morei parte de minha infância em Pelotas e havia próximo a casa em que morava um senhor gordo aposentado que era amigo de meu pai. Vez ou outra, ele passava defronte à nossa casa e conversava com meu pai e brincava conosco usando alguma sorte de pilhéria. Cada vez que nós íamos visitar nossos avós em Capão do Leão, este senhor gordo dizia que íamos tomar “sopa de pedra”. Quando voltávamos, ele não perdia tempo e nos perguntava se a tal sopa de pedra estava boa. Para ele, assim como para tantos outros moradores de cidades de região, Capão do Leão e suas pedreiras são dois elementos indissociáveis no imaginário.
            Não digo que ele estivesse errado, a não ser pelo fato que jamais tomei a tal sopa de pedra (ou conhecesse alguém que a tivesse experimentado). Capão do Leão tem muito de sua história e identidade relacionadas de modo profundo com suas reservas de granito. Muito embora, não foi a pedra que fundou o Capão do Leão, mas o boi.
            No turbulento século XVIII de disputas territoriais entre portugueses e castelhanos pelas terras da margem oriental do rio Uruguai, os habitantes da vila de Rio Grande se lançaram além do São Gonçalo[1] e ocuparam terras que mais tarde seriam os atuais municípios de São Lourenço do Sul, Turuçu, Arroio do Padre, Canguçu, Morro Redondo, Arroio Grande, o próprio Capão do Leão, chegando mesmo às serras de Piratini e às praias do rio Jaguarão. Tudo com o propósito de “marcar território” diante de castelhanos que reivindicavam direitos mais antigos sobre a terra que os lusos. Depois de 1777, ano do Tratado de Santo Ildefonso, podemos dizer que toda a região supracitada já era portuguesa de fato e direito e daí começa a história documental mais abundante sobre todos esses rincões. Capão do Leão aparece como um ponto inóspito a meio caminho entre “os campos de Pelotas” e o Forte São Gonçalo (Arroio Grande). Não existia verdadeiramente Capão do Leão como ponto localidade delimitada, existiam sim cinco sesmarias[2] na área do atual município: Sant’Ana, das Pedras, São Thomé, Pavão e do Padre Doutor. Padre este que chamava-se Pedro Pereira Fernandes de Mesquita e foi tio do eminente Hipólito José da Costa, fundador do primeiro jornal brasileiro[3] e patrono da Imprensa Brasileira. Hipólito muito provavelmente recebeu seus primeiros estudos na estância do Padre Doutor – residência hoje que é a sede da Estância Santa Tecla.
            Bem, mas eu falei de boi. Pois foi o boi e a necessidade de ocupar a terra que trouxe para esses pagos – sem considerar os índios tapes e minuanos que havia aqui – os primeiros colonos luso-brasileiros e sacramentinos.[4] Rebanhos e rebanhos, ora xucros, ora domesticados, eram a riqueza da região naquela época, seja para a produção do charque que já se embrionava, seja para a produção de couro que sempre tinha mercado.
            A pecuária de corte no Capão do Leão foi a atividade econômica mais importante desde a chegada dos primeiros luso-brasileiros no fim do século XVIII até a década de 1880. Tropas de gado e os tropeiros que a conduziam ajudaram a criar os primeiros caminhos leonenses, literalmente abertos na ponta de cascos de bois, cavalos e mulas. A maioria de nossas estradas rurais e mesmo vias urbanas como a Avenida Narciso Silva e a Avenida Três de Maio, simplesmente eram no passado “corredores de tropas” que se direcionavam ou para as charqueadas pelotenses, ou para serem negociadas na Tablada, ou para engorda nos campos úmidos do Pavão.
            Pouco se sabe a respeito do Capão do Leão no século XIX, a não ser que o tal Capão era um rincão certamente povoado nos arredores de Pelotas. O fato é que Capão do Leão existia documentalmente. Em 1809, um requerimento levado ao Rio de Janeiro pelo Padre Felício pede que seja autorizado o erguimento de uma freguesia[5] no “lugar denominado Capão do Leão da fazenda de Pelotas”. O pedido foi acatado, porém a freguesia surgiria onde hoje é o centro de Pelotas. Em 1828, o soldado alemão Carl Seidler, a serviço do Império na Guerra da Cisplatina, por aqui passou e pernoitou. Experiência esta não muito agradável no seu olhar eurocêntrico, pois ela teve que se abrigar numa “venda de mulatos” – lugar onde muitos aspectos o assombraram[6].
            Na Guerra dos Farrapos, o rincão leonense foi disputado bravamente por legalistas e revolucionários. Consta até o registro de uma batalha oficial em 1837, vencida pelos farroupilhas. Mais tarde, no ano de 1851, uma inusitada experiência colonizadora foi tentada nos campos que hoje fazem parte do Jardim América, Embrapa e Loteamento Zona Sul: uma colônia formada por irlandeses e ingleses[7]. Não teve êxito a colônia, mas muitos descendentes permaneceram na região e no município. É a partir da década de 1880 que as coisas no obscuro Capão do Leão das tropas de bois e de ralas informações começam a mudar. Em 1884, a Southern Brazil Railway Company inaugura a ferrovia Pelotas-Bagé. Capão do Leão torna-se um ponto de parada e é agraciado com uma estação. Logo, outros acontecimentos favorecem a transformação da antiga grota em próspera vila.
Até aquele momento, pessoa importante aqui era um sujeito chamado Florentino Antonio dos Santos. Importante por que possuía por essas bandas uma espécie de taverna com hospedaria e potreiro destinada a atender viajantes e tropeiros que vinham da Campanha[8]. Florentino e sua taverna eram a referência naquilo que era denominado o Capão do Leão. Só que Florentino resolveu vender todas as suas propriedades a outro sujeito: um tal de Domingos Fernandes da Rocha. Rocha queria ganhar dinheiro com criação e reprodução de cavalos. Sabe-se lá porquê, teve revés nos negócios e para arcar com as dívidas resolveu vender tudo o que tinha. Só que não passou a propriedade para outrem. Loteou a área em pequenas propriedades e as vendeu para renomados cidadãos das elites pelotense e rio-grandina. Essas pequenas propriedades foram ocupadas por elegantes casas de inspiração europeia e famílias que desejavam aproveitar o clima silvestre do lugar, principalmente nas épocas de veraneio. Em pouco tempo, surgiriam as elegantes Villa do Capão do Leão e Villa Theodózio.
A multiplicação dessas novas moradias fez surgir toda uma rede de comércio e serviços. A estação ferroviária também foi um motivo para que isso acontecesse. Pessoas e produtos agrícolas se dirigiam à estação com rumo à Campanha ou à Pelotas. Onde há circulação, há necessidades de comércio. O primitivo núcleo urbano leonense crescia e se desenvolvia aceleradamente. Em paralelo, a fruticultura de clima temperado tomava corpo como importante atividade econômica. Logo em seguida, a produção de lenha, carvão e as primeiras explorações de granito completavam o quadro favorável do fim do século XIX. Até a Princesa Isabel esteve por aqui, almoçando no requintado Hotel Benjamin em 1885. Com a República, o Capão do Leão passava a ser oficialmente distrito de Pelotas (1893).
Foi a partir de 1909, porém que a Villa do Capão do Leão assistiu seu cotidiano transformar-se ainda mais. Com o propósito de construção dos Molhes da Barra de Rio Grande, a Companhia Francesa[9] ocupara o antigo Cerro das Pombas[10] para extrair grandes blocos de pedra. Junto vieram uma tecnologia de extração mineral inovadora para a época, eletricidade, migrantes e progresso econômico. Mesmo com a saída da companhia em 1919, Capão do Leão e suas pedras tornaram-se famosos na região. A atividade mineradora sempre permaneceu como um destaque leonense, não circunscrito somente a Serra do Granito, mas se estendendo até o Cerro das Almas, Descanso e Passo das Pedras.
Pedras, veraneios, frutas e um regular progresso marcaram o Capão do Leão até meados do século XX. Depois, as antigas famílias que aqui tinham chácaras passaram a ir embora. A fruticultura foi quebrando graças à maestria de algumas políticas econômicas regionais e seus criadores. As pedras sempre continuaram, mas foi a partir de 1950 até meados da década de 1980, com o início do processo do êxodo rural em toda a metade sul do estado, que se inicia um considerável período de contínua migração em território leonense. Mais do que saiu, entrou gente em Capão do Leão. Era afinal o distrito mais próximo a Pelotas.
É a época do surgimento do Jardim América (década de 1950), das expansões das áreas urbanas na Embrapa, Teodósio, Cerro do Estado e as primeiras casinhas às margens da BR-293, embriões das futuras Vila do Toco, Vila Gabriela Gastal e Parque Fragata. Enquanto alguns desses migrantes são absorvidos pela ainda importante mas não tão forte agroindústria de conservas e doces, boa parte vem para trabalhar nos nascentes frigoríficos, nas grandes obras das rodovias, na Universidade Federal e nas plantações de arroz.
Em 1963, Capão do Leão já com algum destaque socioeconômico regional tentou sua emancipação, sonho logo posto abaixo pelo prefeito de Pelotas. Em 1981-1982, a história se repetiria, só que agora com a conquista da autonomia política finalmente concretizada. Eu, particularmente, penso que Capão do Leão, mesmo com todos os seus problemas, ganhou com a emancipação. Um fato se impõe: pela arrecadação que o antigo quarto distrito de Pelotas produzia, o Capão do Leão era muito maltratado nas decisões políticas. Serviços básicos demoravam um “eito” para chegarem, a prioridade das ações públicas se direcionava mais para a zona norte de Pelotas e seus distritos “alemães”. Mesmo tendo permanente um representante na Câmara de Vereadores – Elberto Madruga – a situação não vislumbrava muito uma melhoria.
Com a emancipação, ao menos Capão do Leão passou a ser responsável por aquilo que poderia ter feito de certo ou errado. Na década de 1980, a realidade já era bem diferente de décadas anteriores. Foi o boom da imigração! O município estava sendo construído dentro de um contexto regional turbulento[11]. A década seguinte não fugiu à tona.
No alvorecer do século XXI, Capão do Leão ainda tem uma identificação muito grande com suas pedreiras. Embora, ele não seja somente pedra. O Jardim América possui uma realidade diferente e seu crescimento populacional nos permite dizer que é um núcleo urbano que possui identidade própria. Outras zonas do município também. O arroz e a soja dominam nossa agricultura. A pecuária leiteira também tem sua importância, não desfazendo de nossa agricultura familiar igualmente. Bem sigo falando de economia, vou mudar o disco.
O povo leonense possui muitas matizes em sua origem. Recebe o sangue dos migrantes de nossa região, de vários rincões e municípios do estado. Mesclam-se fortemente os elementos português, ameríndio e negro africano. Dos europeus, ainda conta-se o alemão, o italiano, o basco e o espanhol. O uruguaio também se achegou por estes pagos no decorrer da história.
Seguramente, vivemos em mais de três décadas de emancipação política a primeira e genuína geração de leonenses – no sentido mais amplo da palavra. Não somente pessoas que nasceram aqui, mas pessoas que viveram e vivem a realidade de Capão do Leão desde que ele tornou-se independente. Houve muitas conquistas, novos desafios surgiram. É uma terra com grande potencial humano, natural e econômico. O futuro se coloca como uma indagação persistente, pois já se percebe que aquilo que pertencia ao chamado “ciclo emancipacionista” como ideias e personagens já ocupou seu lugar na história e teve seu legado. A nova geração que vive Capão do Leão tem o desafio de dar continuidade à história deste chão. Mais do que um chamamento, isto é também um imperativo. Afinal, em 2060 seremos o terceiro município mais populoso[12] de toda a zona sul!







[1] Canal São Gonçalo, ligação fluvial entre a Laguna dos Patos e a Lagoa Mirim.
[2] Espécie de unidade agrária correspondente a 6.600 metros de distância. Na época colonial, tornou-se sinônimo de área rural concedida a alguém por serviços prestados à Coroa Portuguesa. Na maioria dos casos, as sesmarias ultrapassam as medidas oficiais. O brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, por exemplo, tinha uma “sesmaria” que contava mais de seis sesmarias de área.
[3] O Correio Braziliense, publicado em Londres, em 1808.
[4] Procedentes da antiga Colônia do Sacramento, atual Uruguay, último entreposto português na América do Sul.
[5] No sentido do texto, uma paróquia com capela matriz.
[6] Seidler descreve sua passagem em Capão do Leão eivada de preconceito, pois fora recebido por mestiços e negros. De certa maneira, ele se choca com os costumes rústicos das pessoas que encontrou. Diferente de quando chega a Pelotas, onde é hospedado por pessoas de costumes bem mais próximos à dita educação europeia.
[7] Vieram patrocinados pela Associação Auxiliadora da Colonização de Pelotas. Os irlandeses eram provenientes da baronia de Forth, Condado de Wexford.
[8] As informações em itálico são do cronista pelotense Alberto Coelho da Cunha que escreveu a obra manuscrita “História dos Distritos de Pelotas” na década de 1920.
[9] Compagnie Française du Port du Rio Grande do Sul.
[10] Nome antigo do Cerro do Estado.
[11] Foi o período da crise derradeira da indústria conserveira na região.
[12] Segundo um estudo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UFPel, de 2005.

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